quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Saraband - ou a insuficiência do amor


"First, people are together, and then they part ways and talk on the phone, and finally there's silence."

Não é meu objetivo fazer uma resenha do último filme de Ingmar Bergman, seu canto do cisne, como alguém descreveu muito bem. Apenas gostaria de deixar um comentário sobre a impressão que este filme me deixou, quando o assisti há aproximadamente dois anos, e nunca escrevi a respeito.

Eis mais um filme de Bergman sobre a falta de amor, sobre o desamor mais consciente de si, entre pais e filhos, entre amantes ou casados, entre amigos, entre as pessoas. Mais um exemplar sobre o tema da angústia crescente gerada pelo desamor que sabe de si e não o nega, não o esconde com meias palavras e falsos relacionamentos ou hipocrisias sociais, mais um filme para o painel onde se enquadram filmes do mestre como "O Silêncio" (Tystnaden, com a divina Ingrid Thulin, uma das divas de Bergman) , "Gritos e Sussurros" (com várias divas reunidas, entre elas Liv Ullmann, Harriet Anderson e Thulin novamente) e "Sonata de Outono (com Ullmann e Ingrid Bergman). Mas este filme se diferencia dos demais por não ser mais um filme sobre o feminino e a angústia vista pelo olhar de mulheres sufocadas pelo peso dos anos, das obrigações, da existência em si. "Saraband" parte de um pai detestável que é um homem desprezível a priori, interpretado pelo magnífico Erland Josephson, que protagonizou o filme "O Sacrifício", de Tarkovski, numa clara homenagem a Bergman pelo uso da paisagem sueca e pelo ator principal. Josephson é o núcleo de ódio acumulado e desprezo profundo pelo filho e pelos demais, o que o torna um alvo fácil de crítica desde o início do filme. Mas Bergman certamente não poderia parar aqui, e expande o sentimento de vazio e desprezo até que eles estejam presentes em quase todas as pessoas envolvidas. Uma mãe que nunca visita a filha esquizofrênica, o filho que desconta o desamor na filha através de um excessivo e quase incestuoso zelo, uma dominação intelectual e afetiva sufocante.

Neste ponto entra o cello. Motivo da tensão crescente entre pai e filha, o instrumento representa um objeto venenoso e torturante para a jovem, e o único laço possível entre um homem velho e massacrado pela solidão, e o futuro, anunciado no frescor da juventude da menina que é obrigada a estudar sob ameaças alternadas com carinho em excesso uma difícil sonata de Hindemith. O filme de Bergman não é realista. As cenas são extremamente simples em sua maioria, com uma atuação elegante e tranquila, quase ausente em suas naturalidades (refiro-me a Josephson e Ullmann, já que as cenas de pai e filha feitas por Borje Ahlstedt e Julia Dufvenius são de grande tensão dramática... prepare-se para berros, lágrimas e agressões), possivelmente por serem estreladas por dois grandes atores na idade madura... temos aí a desilusão vestida e coroada de calmas flores secas e mantos cinzentos da velhice. Ocorre que, paradoxalmente, parecemos estar num sonho ou num pesadelo tranquilo e silencioso, ao som de uma famosa Sarabande de uma das Suites de Bach... mas a qualquer momento algo horrível pode acontecer, temos constantemente esta sensação. É um filme onírico, mas como devem ser os pesadelos de pessoas refinadas e conformadas com seu vazio exterior e interior.

Ullmann é uma ex-mulher do personagem de Josephson, quem vem visitá-lo sem motivo aparente. Aí resta uma esperança a este desamor generalizado... ela não tem um motivo racional para vir conversar e fazer companhia a um homem tão frio e egocêntrico. Mas ela vem e fica muitos dias, meses... e observa todo o drama dos outros trẽs personagens. Marianne é tão expectadora dos eventos quanto cada um de nós, acompanhando aquela silenciosa loucura crescente. O filho do personagem de Josephson, Henrik, é violoncelista e viúvo, e impõe à filha que ela deve ser solista, destino recusado por ela, que deseja tocar numa orquestra, fazer parte de um grupo, e não viver na infelicidade de um esforço massacrante segundo seu ver. O pai é depressivo e tem medo da solidão, um medo doentio do desamor que ele ainda não assumiu ser sua realidade. Ele já está tão mergulhado nesta solidão quanto seu pai, só que este tem a coragem de assumi-la e vive esta mesma misantropia de forma quase sacana.

A peça de Bach parece representar uma mão salvadora para estas pessoas que naufragam em vazio... o som, profundo e quase sagrado na sua simplicidade, é como amor divino, única possibilidade para estas almas perdidas num mar negro. E a libertação da simplicidade da sarabande, assim como da palavra "não" em um momento de negação, de recusa, que pode decidir toda uma vida e libertar uma pessoa inicialmente fadada ao destino de desprezo e sofrimento inconscientemente moldado por seus pais. Neste ponto, o amor mostra-se insuficiente diante do desejo mais básico dos er humano. O de ser livre.

Será que o problema é que o amor em excesso de fato é desamor transtornado, culpado, doentio, virado obsessão? Ou será que às vezes é necessário realmente sacrificar uma forma de amor absoluto em nome desta ansiada liberdade individual? O amor só pode florescer na liberdade, li uma vez, rase de um iogue famoso (Rajneesh esqueci seu sobrenome, o Osho). Talvez seja este o problema.


Curiosidade: como todo diretor, Bergman tem também seus cacoetes. Uma cena repete sua mania em se preocupar com a angústia do tempo e a consciência dele... a cena em que Liv Ullmann encara um relógio por um minuto. É a mesma coisa que faz Max von Sydow em "A Hora do Lobo", aliás meu Bergman favorito.


Fica o silêncio atormentador e a sarabande de Bach. Triste este filme, e angustiante... mas belo como uma árvore morta à beira de um rio no auge do inverno e da desesperança da madrugada.

domingo, 23 de agosto de 2009

Expressão artistica da morbidez social



Para ler ouvindo “Melos”, de Tsabropoulos, Lechner & Gandhi:


De repente eu deveria ter me graduado em filosofia, ou talvez filosofia da arte.


Atualmente meu irmão está finalizando seu mestrado cujo tema é basicamente como o espaço público hoje, tem se misturado à esfera da vida privada no cotidiano humano. Interessantíssimo.

Mas me chamou a atenção uma conversa que tivemos por estes dias sobre a expressão artística; “o que é” e “quais os seus limites” e, em uma escala mais elevada, “o que é arte”, afinal. Bingo, um período de iluminação momentânea.


Não quero soar polêmico, embora eu saiba que em minha essência, existe algo que incomoda muita gente.


Pois bem:


Em 2007, o artista plástico Costarriquenho Guillermo Vargas Habacuc fez uma “instalação” que causou polêmica, intitulada "Exposición N° 1, em uma mostra artística realizada na Galeria Códice, em Manágua. Na entrada da exposição, ao som do hino Sandinista tocado ao contrário, os visitantes liam a frase "eres lo que lees", cuja as letras eram formadas por comida de cachorro.

Na seqüência, viam um pobre cachorro visivelmente debilitado, amarrado, a definhar de fome até a morte. Naturalmente isto causou protestos, inclusive por parte deste que vos escreve. Tal cachorro recebeu o nome de “Natividad”, e permaneceu amarrado até o dia seguinte a abertura da exposição, quando morreu de fome diante dos expectadores.


Em 2000, o Dinamarquês Marco Evaristti criou uma instalação no museu Trapholt Kuntmuseet, perto da cidade de Kolding; em que foram posicionados 10 liquidificadores em linha reta em uma sala, cada um deles contendo água e um peixinho dourado. A instalação, batizada de "Eyegoblack", convidava os visitantes a acionar os botões dos liquidificadores; podendo ligar o aparelho e moer o peixe vivo - e segundo testemunhas, os liquidificadores foram acionados inúmeras vezes.



E, posteriormente, em 2006; o mesmo Dinamarquês criou outra instalação, desta vez na galeria Aalborg, na qual colocou a venda almôndegas feitas de sua própria gordura e embaladas com sua foto. Tendo aproveitado a gordura extraída de uma lipoaspiração, cada almôndega foi vendida á bagatela de US$ 4.390,00. E, como se não bastasse, algumas das – no mínimo perturbadoras – iguarias, foram consumidas em um happening. O título desta instalação era Polpette al grasso di Marco, ou; "Almôndegas com a gordura de Marco”.


Das três instalações acima; coloco agora sob perspectiva de duas outras – muita atenção a estas - que o próprio Evaristti já havia realizado anos antes: Uma instalação em que havia exposto seus próprios excrementos recobertos com folhas de ouro incrustadas com moscas de diamante; e outra, em que exibia uma Ferrari com um cadáver embalsamado dentro.


Sou absolutamente contra a utilização de quaisquer espécies de seres vivos em instalações artísticas que não o próprio ser humano, pois este, supostamente é dotado de um falso senso de livre arbítrio. Não temos este direito. Mas por outro lado, sou infinitamente menos complacente com o ser humano. Não me incomodaria tanto em ver um condenado definhando, ou então, outro sendo moído em um liquidificador.


No entanto, existe um significado perturbador, muito mais profundo; na discussão de tais polêmicas instalações. Algo que os críticos de arte, público leigo bem como defensores dos direitos humanos ou dos animais, não pegaram nas entrelinhas.

É perigosíssima a tentativa de analise de tais obras sob o risco de cair em alguma espécie de julgamento ético ou moral sobre o ato em si; quando a problemática, a questão real, é sobre o que tais obras versam, e não a crueldade existente nas mesmas.


A questão real neste caso é a mídia, publicidade & marketing. E tais obras, são o veículo de uma critica furiosa e violenta quanto ao status do que damos – e acreditamos – serem reais valores ao que buscamos, almejamos enquanto seres existenciais. É sobre a futilidade do nosso dia a dia. É sobre a brutalidade das nossas relações interpessoais bem como com o mundo.


Somos uma geração estúpida, em que acreditamos que o real valor existencial está nas sandálias que a Gisele Bündchen usa, e que se as usarmos, talvez estejamos a um passo mais próximo a ela. Somos uma geração que acredita que ao termos um carro do ano com sistema GPS, 6 airbags, motor de 170 cavalos e detector de proximidade, seremos melhores do que a grande massa que nos rodeia. Somos uma geração doente, egocêntrica e com um senso deturpado do que é o real e o que é o imaginário. E pior, não sabemos discernir o que é o que, de fato. Somos a geração em que foram cristalizados os valores do que é arte. Do que é belo. Do que é feio. Do que é grotesco. Do que é normal. Do que é anormal. Somos a geração que industrializou e otimizou a criação de outros seres vivos apenas para processá-los em fábricas, pendurados em ganchos, esperando para serem fatiados, triturados e enlatados.


É o caso da velhinha que se senta em uma sala de concertos, e presta atenção em cada nota, cada acorde do Montagues and Capulets de Prokofiev com olhar severo e crítico, mas esquece do “deixar-se levar” e sai dali direto para uma sessão de carnes congeladas de um supermercado. Somos a geração dos que seguem regras impostas por uma mídia de caráter plenamente comercial, e em nome de tal caráter, quantificamos os valores individuais em termos de cifras e do que você veste ou deixa de vestir. E, não é questão de livre arbítrio, é “engula” ou está fadado a andar a margem da “sociedade”, sendo constantemente apontado como um “freak”.


Neste contexto, as 3 instalações acima, sob a ótica das duas ultimas que citei, nos dão uma perspectiva inteiramente nova ante a discussão sobre o que é e o que não é arte. E, estou longe de ter a competência necessária para discutir isso, visto que não tenho gabarito para tal. Mas, o que está claro através delas é que: A arte, por mais grotesca que ela possa parecer – e vejam, novamente reafirmo a minha discordância quanto aos pobres animas “objetizados” em tais instalações – assume um papel de absurda importância; pois é justamente ela que faz frente à mídia. A livre expressão artística não dogmática – e porquê não, até mesmo militante, libertina – é o único veículo de expressão individual que hoje, é capaz de fazer frente e combater o “espectro da coletividade impositiva dos bons costumes e gostos politicamente corretos”; isto é, desmontando, analisando, escrachando e conseqüentemente, tornando evidentes o quão frágil, imbecis e hipócritas são as estruturas de valores que o ser humano carrega consigo hoje. É o único veículo não contaminado com “direcionamentos” criativos artísticos vindo de fora. É o único veículo apartidário, livre e; portanto, dotado de fluidez criativa e informacional total. Este é o ponto. Através de tais “instalações” “artísticas”, por mais hediondas que as mesmas possam ser, nada mais vemos do que o encarar da vivissecção da própria alma humana, se é que existe uma.


...e, aí do próximo que quiser bancar o sabichão pregando que nada mais se criou de bom musicalmente dizendo, após o período barroco; vai tomar uma bela palmatória de arco Chinês...


Ponto.


Finalizando – e nada a ver com o assunto (em partes) - deixo-os com o fabuloso curta Francês chamado “Dix” que aliás esteve no Anima Mundi. Vale muito a pena.



Curta Metragem Francês “Dix”
















sábado, 8 de agosto de 2009

Violinos, Cello, Rock Pt. 23 - "Devil Doll - Dies Irae" ou "A Catarse da loucura através da Música"


"Devil Doll - Dies Irae" ou "A Catarse da loucura através da Música"

É fato que a grande maioria dos artistas, independente da forma que os mesmos escolheram para se expressar, se analisados sob uma ótica comportamental; não é raro encontrarmos indícios de que o produto de sua arte nada mais é do que um reflexo de seu transtorno.


A Expressão artística em minha opinião é a possibilidade da catarse da dita genialidade e loucura de uma mente criativa, direcionando tal energia á produção. O produto final de tal processo é o “escape”; a condensação e solidificação de tais pensamentos e idéias na forma do “objeto”; garantindo assim uma possibilidade de que a mente siga adiante quase intacta, pois esta, sublimou a energia conflitante.


Tendo isto em mente, é fácil perceber o quão frágeis são os conceitos populares sobre o que é de fato a loucura, a normalidade, desvios sociais ou comportamentais. Na verdade em maior ou menor grau;

todo – inclusive este que vos escreve – possuem algum traço na forma e no caráter que indica um determinado transtorno comportamental. A resposta está em “como” lidamos com este tal transtorno. Alguns gritam. Outros esmurram. Vários tentam a crença. E outros, criam. Mas todos, invariavelmente, julgam.


Gosto do texto de Bruno Gagliasso para a apresentação de uma peça sobre Van Gogh; de certo modo ele explica bem a mecânica da pressão social / existencial x produção artística na tentativa da manutenção da própria sanidade.


"Quem nunca se sentiu um pouco como Vincent? Não louco, mas enlouquecido. Não fracassado, mas incompreendido. Não sozinho, simplesmente inadequado. Como manter a lucidez e a determinação contra toda uma sociedade que não é capaz de te compreender? E pior, que te obriga a ser outra coisa?

Van Gogh nunca se rendeu.

Uma luta contra tudo e contra todos. A convicção mais forte do que qualquer outra cois

a. A sociedade tentou enlouquecê-lo, e em alguns momentos conseguiu. Mas se nas artes os fins justificam os meios, Vincent venceu.

Van Gogh está em todos que um dia ja se sentiram inadequados. Forçados pela sociedade a fazer algo. Forçados a se transformar em algo que não são. Fernando Pessoa disse que o coração, se pensasse, pararia. E Vincent, só coração, não parou nem por um segundo. Ou talvez só no último segundo – quando pensou.

Há muitos Vincents Van Goghs espalhados pelo mundo (...)”



Uma coisa curiosa e que gosto muito aqui no “Vinho & Cigarros”, é que – excetuando-se os grupos musicais que transitam no mainstream e transformaram sua produção em algo próximo a escala industrial, apresentando um trabalho já pasteurizado – trabalhamos artistas e temas que sustentam o que está escrito acima; e pode-se facilmente notar fortes traços do processo de catarse envolvido na atividade criativa. Melora Creager do Rasputina faz isso em suas composições. Human Drama ídem. Lisa Hannigan o faz de uma maneira incrivelmente doce e bela. Antony & The Johnsons em seu travestismo sonoro e visual alcança resultados lindos.




Assim como os admiráveis desconhecidos deste projeto Ítalo-Esloveno chamado “Devill Doll”.


Liderados pela misteriosa figura conhecida por “Mr. Doctor” – possui formação em Filosofia Artística, Artes Visuais e Criminologia bem como aparentemente em Música - praticam uma espécie de rock sinfônico que em muitos momentos chega a beirar o gótico; aonde colocam em prática todo este papo de catarse emocional descrito aí em cima. Em alguns momentos, é possível sentir de uma maneira brutalmente incômoda e desconcertante, toda a carga emocional impregnando o trabalho. Dói. Literalmente caminha pelo fio da navalha entre a insanidade e a genialidade.


De alguma forma, penso que caso não fosse este projeto há muito a mente do Mr. Doctor já teria se rompido - Se é que de fato não o fez.


Pouco se sabe a respeito deste projeto, pois ele é levado adiante no sentido extremo do termo “projeto pessoal”. A grande maioria do material que já foi gravado nunca foi lançado. E, apresentações ao vivo são tão raras quanto o material em si. O pouco que existe disponível são itens de colecionador; tendo sido lançados em tiragens baixíssimas em termos de mercado. E isso é algo curioso, pois, se analisados os componentes do projeto, é de se admirar que o mesmo seja levado a cabo desta forma. Vejamos:


Desde seu primeiro trabalho, as sessões orquestradas foram feitas em colaboração entre a banda e a Orquestra Sinfônica Eslovena completa. O caso é que o 1º violinista da orquestra, Sasha Olenjuk, foi o primeiro membro do Devil Doll.


Todos os envolvidos entendem que não produzem música vendável e, portanto a comercialização e a realização de shows, não é seu foco. Crêem que estão realizando algo que em termos artísticos possui um valor devastador; capaz de quebrar uma série de paradigmas não apenas em termos de conceito, mas também no senso de estética musical, poesia e na extrapolação da fusão do termo erudito, progressivo, rock sinfônico e dark rock. Isto poderia soar demasiadamente prepotente ou arrogante, mas após algumas audições dos álbuns desse pessoal, entende-se porquê afirmam isso.


As sessões de gravação do “Dies Irae” – disponível aqui - renderam algo em torno de 900 minutos de música. No entanto, o álbum foi disponibilizado em 3 tiragens limitadas. A 1ª, apenas 50 cópias, e as 2 últimas, 900 cópias cada; em um total de 1850 cópias apenas.


As influências eruditas estão fundidas com outras influências mais modernas no trabalho todo; e o resultado geral funciona de maneira simbiôntica. Não é difícil identificar elementos dos trabalhos de Shostakovitch, Bartok ou Bernard Herrmannn; bem como outras como por exemplo, do Cabaret Alemão. Pode remeter ao Dark Cabaret de hoje em dia; mas logo percebe-se que é apenas uma impressão: Acreditem, é algo muito mais doentio, perturbado e perverso. Está mais para uma versão deturpada, corrompida e deformada de “Alice no País das Maravilhas”, “Mágico de Oz” ou os antigos contos de fadas.


E, não pensem que pelo descrito acima, possam seguir uma linha do Black Metal. Não, não é diversão barata, são refinados demais para isso.

Se o instrumental total já é algo que impressiona; as vocalizações - por vezes bela, por vezes angustiada, mas definitivamente sempre permeadas de uma insanidade visivelmente clara de Mr. Doctor - são um show à parte. Cada palavra é dotada de uma cor específica, e em sua técnica vocal, ele praticamente transforma sua voz em um instrumento.


Costuma definir a música do Devil Doll como desagradável e incômoda, e prega que a expressão artística, como processo de expurgo psicológico, deve ser algo que machuque; e que a mesma, não tem que aparentar bela; muito pelo contrário. Tanto que, existem relatos que nas sessões de gravação e também nas raras ap

resentações em público; Doctor aparentava entrar em uma espécie de transe, como se os seus olhos estivessem literalmente virados para dentro; buscando inspiração dentro de sua mente, e ignorando todos os demais presentes.


Particularmente não acho o resultado de seu trabalho desagradável. Existem partes que posso considerar incômodas por serem desconcertantes. Da mesma maneira que existem partes em que ele consegue uma melodia dotada de um lirismo e beleza ímpar. É quase um contraste entre o que existe no céu e no inferno – lembrando que, o Inferno aos olhos de alguns pode ser igualmente belo.

Trabalho dificílimo de definir. Por outro lado, é um trabalho que merece uma carinhosa e cuidadosa audição. Alguns irão sentir repulsa. Outros, ficarão cativados. E outros ainda, definitivamente ficarão indignados. Mas é certeza que todos, de uma forma ou de outra, sentirão alguma coisa.



Link: Devil Doll - Dies Irae





















sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Seja bem vindo, Renato!!



Caros amigos e colegas,


Para quem sempre viu o nome de um tal “Renato” aí na equipe, mas nunca viu nenhum texto dele, aqui vai uma breve apresentação – sendo que o mesmo jura que daqui em diante irá postar com certa freqüência.


Formado em Biotecnologia pela UNESP, agora cursa Psicologia pela USP – estudioso o rapaz não?


Foi forçado a desencanar do investimento em um Cello tempos atrás, após tentar reverter o término de um relacionamento via celular e receber uma conta centenária, financeiramente dizendo. – Eis uma nova modalidade de frustração Cellística; está quase para um estelionato musico-artistico-emocional. hehehe


Mas o cara foi prático; optou pelo violino por uns tempos, mesmo assim mantendo aquela paixão pelo Cello, engavetada, até tempos melhores que estão por vir e descobriu que ligar para um celular no calor da paixão pode virar prejuízo. rs


Musicalmente está com o pé calcado no Rock. Me confessou que por questões de “porte físico”, optou por deixar os cabelos crescerem do que entrar em uma academia – o que cá entre nós, concordo plenamente, é bem menos trabalhoso... hehehe. Mas, como o resto da equipe, pegou gosto pelo erudito e tudo o mais que é bonito, bem feito e consegue despertar algum tipo de sentimento. Anda com algumas neuras quanto ao “em tese” – minimalismo – do Philip Glass, mas não dispensa nossos queridos Bach, Vivaldi, Beethoven e Sakamoto.


Deve ser coisa da formação em Biotecnologia do cidadão – e tenho sérias duvidas quanto a presença do mesmo nas aulas de Biotética; visto que de acordo com ele, come “(...) todos os dias a mesma porcaria: macarrão com molho pronto, 2 hamburguers feitos no microondas, 5 salsichas esquentadas e as vezes um ovo. Fica um lixo, mas fica pronto em menos de 10 minutos. É muito prático e tem todos os nutrientes que preciso. Essa é minha alimentação há uns 3 anos e não morri até agora”. Mais um indício sobre a questão da ausência ás aulas de Biotética, é sua mania de só beber água – Isso está me cheirando a discriminação quanto às coitadas das bactérias para a fermentação do vinho ou as leveduras da cerveja?

De qualquer modo isso pelo jeito irá mudar em breve, pois, percebeu que anda tomando prejuízos nas noitadas Open Bar. (Enquanto isso, o fígado e os rins agradecem... hehehe)


Adepto da sonoterapia; embora as leituras esteja quase todas focadas à Psicologia, de vez em quando ataca de Assis, Lispector, Drummond e tem alguma ligação com Augusto dos Anjos. Admite que não entende picas de Cinema, mas se identifica com os trabalhos de Ingmar Bergman. Bom, imagina se entendesse então? hehehe



Renato meu caro, puxe uma cadeira, tem água gelada na geladeira, deixe o vinho e a cerveja para mim e para a Cecília – estamos de olho nas garrafas hein? hehehe e seja muitíssimo bem vindo ao Vinho & Cigarros!!



quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Abomináveis públicos - "L'enfer c'est les autres", p.1



O genial pianista canadense Glenn Gould aposentou-se dos palcos bastante cedo, aos 31 anos. Isso foi em 1964, e seu motivo foi simplesmente... porque ele odiava o público, detestava os palcos, a obrigação e os anacronismos do mundo de concerto. Ele dizia que o público não entendia nada... então para que continuar aquela farsa? Gould continuou a gravar discos sublimes, mas manteve-se isolado, estudando sua música, criando para si e para as gravações. Virou um mito misantropo, que deixou provas inebriantes do poder da Beleza e da possibilidade de grandes altitudes no espírito humano, a começar pela famosa interpretação das Variações Goldberg, de 1955, que já garantiriam seu lugar no topo das listas de artistas mais admiráveis de todos os tempos.

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Mas a atitude de Gould foi assim tão drástica e incompreensível? Ele foi mesmo muito radical e até desrespeitoso, arrogante com relação àqueles que o amavam? Minha teoria aqui é de que ele foi apenas honesto, coerente e sensível à realidade das audiências de música clássica. Nada mais. E realmente o público o amava? Minha segunda teoria responde... não.

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O público de música clássica é, em sua considerável parte, simplesmente abominável.

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Idas frequentes a concertos, a prática de fazer parte destas plateias feita em muitos anos desde tenra idade e uma sensibilidade aguçada para comportamentos sociais deram-me a percepção, que geraram a inevitável e triste conclusão. Para que fique claro onde quero chegar, e detalhar a exposição para que a frase acima não seja tão radical e irresponsável quanto parece, vou enumerar minha posição acerca do público de música erudita (a parte massiva, mais comum, obviamente não me refiro a todas as pessoas, ao preço de expôr falso testemunho e gerar um paradoxo, incluindo a mim mesma):






  • As pessoas que frequentam concertos (sejam sinfônicos, operísticos, ou música de câmara) são em sua boa parte de extremo conservadorismo no que se refere a Estética, a valores morais, religiosos, políticos, e às suas próprias concepções mofadas de arte e entretenimento (e apesar de não explicitarem o fato, elas confundem arte e entretenimento, como o fazem as massas de classes menos abastadas, de outras formas).
  • A maioria teve uma educação rígida quanto ao que define status śocio-cultural, e possui ideias antiquadas no que se refere a Cultura de forma geral. Elas se sentem na obrigação de consumir arte para "pertencerem a uma elite" e serem consideradas pessoas cultas, como seus pais lhes ensinaram.
  • Boa parte simplesmente não entende nada do que ouve, e adora qualquer um que apareça na sua frente tocando uma de suas peças favoritas, de algum de seus compositores favoritos, filtro esse que restringe os artistas a um período bem específico da História da Música, uma mancha amarelada que se estende do fim do Barroco ao Romantismo Tardio do início do século XX. Elas têm cera nos ouvidos e não cansam de ouvir as mesmas peças, como se fossem cantigas de ninar em suas caixinhas de música carcomidas.
  • O público segue um ritual de etiquetas frígidas a respeito de uma missa da qual não entenderam uma palavra, não sabem porque estão ali, e se tornam agressivas e mesmo baixas e mal-educadas com quem ousar mudar o tom do rito sacrossanto eregido por suas ignorâncias e insensibilidades cristalizadas em anos.
Vamos aos "causos".
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i. Uma orquestra do Rio, a Petrobras Sinfônica, tem ou tinha até ano passado uma série de concertos que eram antecedidos por momentos de descontração, que chamavam "Happy Hour Miolo". Antes do concerto, o público chegava aproximadamente uma hora mais cedo e no hall de entrada da Sala Cecilia Meireles ouvia um grupo de jazz, ou algo parecido, e enquanto isso as pessoas eram servidas por garçons de pequenas doses de vinho Miolo. Ou seja, era mesmo um happy hour. Num destes concertos, onde se não me engano iriam tocar Schubert, fui com uma amiga, e ficamos a bebericar nosso vinho e a ouvir um grupo que tocava desde Piazzolla a Dave Brubeck. Quem conhece jazz, sabe que a música é feita pra tudo... num show de jazz, fala-se, ri-se, e também eventualmente se dança se a música instigar. É a música mais livre que existe. À nossa volta, estavam senhoras e senhores na maior parte idosos e vestidos com pompa excessiva. Alguns evitaram o vinho por que segundo foram adestrados, ops, ensinados, música clássica exige concentração, e o vinho, como outras drogas (ver o post "Tarja Preta" abaixo para mais), tira essa rigidez do cérebro de um ser considerado sério por seus pares. Boa parte destes senhores estavam sentados e não moviam um músculo e não proferiam uma sílaba, como se algum maestro tivesse dado algum sinal ao exército para a execução (!). Algumas pessoas, entretanto, incluindo minha amiga e eu, conversavam descontraidamente, enquanto o grupo começou a tocar entusiasmado o clássico de Dave Brubeck, "Take Five".
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Alguns mais jovens, incluindo eu, começamos a ensaiar movimentos de cabeça e corpo animados, como um convite à dança, sutil, mas irresistível... afinal, era "Take Five"! Quem sabe, sabe.

De repente, enquanto conversávamos baixo e a música tocava animada no happy hour, uma senhora vestida num manto vermelho e maquiada ao extremo levantou-se com olhar muito duro e agressivo e disse para nós duas: "Vocês vão fazer o favor de calar a boca? Quero ouvir a música. Se não se calarem, dêem o fora". Como se ela tivesse o poder de nos expulsar da Sala, como se outras pessoas não estivessem conversando, como se estivéssemos nos esgoelando, e finalmente, como se não fosse um happy hour, e não uma peça de câmara. Respondi, erguendo o copinho de vinho com certo ar simpático meio fanfarrão: "senhora, relaxe...é só um happy hour!". Ela nos ameaçou três vezes, e não tirava o olho de nós (que éramos duas das pessoas mais jovens que estavam no ambiente). Resolvemos, para que minha amiga não fizesse uma cena xingando a dita senhora, ir para o outro lado, e curtimos de lá o ótimo som dos músicos. Conclusões: ela estava de mau humor, ela não sabe que jazz nasceu nos puteiros e que é feito para enlouquecer, ela aprendeu que numa sala de concertos (mesmo no hall de entrada), os músicos tocam e o público se cala, e depois aplaude educadamente. Ela não sabe nada de música, de fato tampouco o que está fazendo ali. E ainda alimenta preconceitos: "duas jovens com roupas exibidas que nem essas duas, enchendo a cara e falando, dando risinhos, só podem ser estúpidas que não têm educação. Vou lhes dar uma lição". Mal sabe a tal senhora que provavelmente as duas estúpidas sabem mais sobre música do que ela jamais saberá em toda a sua monótona vida silenciosa.

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ii. Outra vez, esta mesma orquestra citada acima recebeu um dos mais aclamados pianistas do nosso tempo, Bruno Gelber, para a execução do dificílimo e emocionante Concerto para Piano no. 3, de Rachmaninoff, no velho (e cheirando a mofo) Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Programão para as velhinhas chacoalharem suas jóias e os senhores com seus ternos feitos sob medida. Muitas destas pessoas, contando também os jovens (entre eles, muitos casais de namorados, o rapaz querendo mostrar cultura para a mocinha burra ou vice-versa, mas nenhum dos dois com a menor noção do que possa significar este concerto para o mundo pianístico, ou da carreira de Gelber), pelo que se apreende das conversas, apenas sabe que é Rachmaninoff, que era romântico, e fez "peças lindas", isso basta. Muito bem.

O concerto foi sofrível. O pianista estava mal de saúde e em má forma, esforçou-se muito certamente, mas a orquestra não ajudou. Certamente que é uma má orquestra, vive correndo, ensaia pouco comparado ao esforço necessário, mal regida e administrada, mas que possui alguns bons músicos e trata de oferecer, ao contrário da Orquestra Sinfônica Brasileira (que é simplesmente cara demais para seu nível e a situação sócio-econômica de uma cidade como o Rio), peças de primeira a preços muito acessíveis, e projetos inovadores (como o Aquarius, música clássica na Praia de Copacabana). Mas é uma orquestra que se arrasta, e cujo regente, deitando-se confortavelmente na fama e em sua longa carreira, tem por seguro que é sempre a estrela da cena. O senhor Isaac Karabtchevsky decidiu que não precisa fazer muito esforço, ele já chegou ao topo e domina qualquer peça. Desrespeita grandemente muitos compositores com essa atitude. Nessa noite, foi o velho russo Rach. Atrasos constantes, um som apagado, erros nos metais, uma depressão que faria corar qualquer suicida. O final? Grandes e efusivos aplausos acompanhados de gritos de "bravo", "magnífico", "sublime", e mais uns dois ou três adjetivos do limitado repertório de elogios da audiência de música erudita. Eles simplesmente idolatram qualquer coisa que seja feita nos palcos. Onde estão as mentes alertas? E as pessoas que entendem e fazem música? Elas simplesmente não vão aos concertos. Nas palavras de algumas pessoas que conheço deste universo, simplesmente é cansativo, não vale a pena, e as pessoas são chatas e efusivas. O espetáculo perdeu a graça há muito tempo.

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iii. Conheci um violinista que iria apresentar-se em pouco tempo no Concerto Triplo, de Beethoven. Ele estava apavorado, pois nãos e sentia preparado para isso. A fim de consolá-lo, disse: "você já enfrentou outros concertos difíceis... para que se importar com o que as pessoas vão achar da sua performance? O público não sabe de nada". Ele concordou, mas estava preocupado com os poucos que iriam realmente ouvir compreendendo, alguns violinistas, era a opinião deles que contava. Lembrei-me da famosa frase da peça de J.P. Sartre, "Huis Clos", quando uma das personagens, que está com as outras pessoas num quarto abafado e sem espelhos, para toda a eternidade após suas mortes, diz: "l'enfer...l'enfer c'est les autres" (o inferno...o inferno são os outros). O inferno é o semelhante, é o ser humanos olhando para você, ou pensando sobre você, lhe julgando, ou lhe azucrinando com suas manias ridículas e suas palavras grosseiras... o inferno não pode ser experienciado na solidão. A solidão é a ausência de paraíso e de tormenta, é o nirvana. Glenn Gould que o diga. Recordo-me também do regente que aparece no famosos filme de F.Fellini, "Ensaio de Orquestra". Num momento de confissão, ele diz ao jornalista que grava sua entrevista palavras parecidas com estas: ao conduzir meus músicos, que estão em oblívio e cheios de desamor pelo que fazem, não olho para eles... suas faces patéticas, seus olhos que me odeiam... evito seus olhares. Este maestro está só com sua música. Sua orquestra é sua abominável plateia sem consciência. Durante o concerto, existem etiquetas. Estas todos conhecem e seguem à risca. Se algum pobre desavisado não conhecê-las, ou se esquecer num momento de empolgação, e por exemplo aplaudir entre dois movimentos da mesma peça, ouvirá uma saraivada de "shhhhhhhhh" pior do que o próprio som de seu pobre aplauso. Se você cochichar no ouvido de alguém que lhe acompanha, seus vizinhos de cadeira irão lhe censurar com olhares e mesmo lhe ofender. Em suma, os policiais do bom comportamento nas salas de concerto são impecáveis em presença de espírito (de porco) e ainda mais grosseiros do que os hábitos que querem aniquilar. Eles desejam aniquilar a própria emoção e o envolvimento com a arte que se lhes mostram.

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iv. Há dois anos, fui assistir a um concerto da Sinfônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bela porcaria, mas o repertório me interessava. Mas eu não sabia da parte ruim: era um concerto didático para crianças das escolas públicas. Quando cheguei na sala, fiquei aterrorizada, mas estava lá, então não custava nada sentar-me e pelo menos me divertir. Havia mais algumas pessoas desavisadas como eu, mas o que se espera numa situação destas? Uma sala lotada de aproximadamente 300 crianças e adolescentes sem a menor noção do que iria acontecer ali, sem acesso, sem nada. E rindo muito, se divertindo, o que tornava o ambiente bem agradável de fato. O concerto era para eles e ponto final, não para nós. Ninguém realmente apareceu para lhes instruir sobre as tais etiquetas, que os músicos tomam por certo, e nada sobre os compositores. Então de didático aquilo não teve nada. Mas enfim, não é meu objetivo falar sobre isso, mas sim contar sobre a experiência de estar numa plateia totalmente diferente da plateia usual de música clássica. Num solo de piccolo (peça de Vivaldi), olhei para o lado e vi um menininho de no máximo 7 anos com os olhos estupefatos, a boca aberta, uma maçã na mão...ele estava comendo a maçã quando foi tomado de assalto pela beleza daquele som e pela habilidade da musicista. Vi a emoção e o deslumbre estampado na inocência de um garoto humilde, enquanto uma senhora idosa do outro lado fazia caretas para os aplausos fora de hora das excitadas crianças.


Sinceramente, poucas vezes me diverti tanto numa sala de concertos quanto nesse dia, entre crianças e adolescentes "mal-educados".

Para as plateias usuais, aquilo é seu entretenimento apenas. A Nona Sinfonia de Mahler não vai mudar suas vidas, não vai lhes proporcionar uma experiência dionisíaca, não vai revolucionar seus estômagos e corações. Elas estão ali por obrigação, porque é culto ir ao concerto ao invés de ver TV. Elas não têm a menor emoção real e suas concepções estéticas são limitadas a ideias de beleza extremamente conservadoras. Todas, praticamente, nasceram no século XX, mas parecem desconhecer as vanguardas que mudaram as ideias de música, como atonalismo, por exemplo. Concertos de compositores como Dutilleux ou Arvo Pärt ficam vazios, e muitos dos próprios músicos não estão preparados para "tanta" modernidade. O violinista citado anteriormente me afirmou mesmo que odeia tocar até Villa-Lobos! Só lhe agrada século XIX para trás. Ele não percebe que toda a sua glória de violinista ambicioso, se houver, será experienciada e aplaudida por uma plateia constituída de pessoas sem emoção, sem tesão, sem ousadia, e mesmo sem musicalidade. Algumas precisam usar aparelhos de audição e usam suas melhores roupas da década de 50 para prestigiar seus concertos e assim pertencerem à casta "dos que sabem". Porque ele e mais alguns tantos fazem cara feia para as crianças das escolas públicas, que não têm respeito pelos anacronismos da música clássica, seus velhos spallas de casaca preta cumprimentando solistas e regentes com toda a reverência (depois de terem fumado seus baseados nos bastidores). Porque estas crianças talvez até preferissem Phillip Glass com suas séries repetitivas e seus sons maravilhosamente melancólicos à chatice grandiloquente de um Brahms (porque ele consegue ser chato inúmeras vezes... Nietzsche afirmou que Brahms fazia música para senhoras mal-amadas... não chego a tanto, mas ele exige um bocado de paciência e vinho às vezes). Porque elas talvez cantassem junto com um Hermeto Pascoal e sua espetacular inventividade e liberdade com instrumentos (porque para ele tudo dá som), sua humildade e generosidade (na última faixa do disco "Festa dos Deuses", ele grita: "a música universal é música de direito!"), e dormiriam, para escândalo das senhoras e seus colares, durante a execução de um monótono poema sinfônico de Liszt ou de uma ópera brega de um Donizetti. O pior é que eu já perdi vários concertos ótimos para estas pessoas anacrônicas, porque elas correm para garantir seus lugares e tomam rapidamente todos os ingressos... esgotam lugares para entrar em devaneios sonâmbulos diante de uma Maria João Pires.

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Se o concerto for gratuito então, prepare-se: as supostas educadas plateias irão lhe arrancar pelos cabelos se necessário, do seu lugar, para garantir uma boa visibilidade, em detrimento de outros. Minha irmã foi empurrada por uma senhora enfurecida durante uma execução do Requiem de Mozart na Igreja da Candelária, porque a menina estava "na sua frente". Culta, esta senhora, muito culta e gentil.
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Ao fim de uma apresentação, independente do quão boa ou ruim ela foi, pergunte a algum sujeito ou senhora ao seu lado o que acharam: "maravilhoso... ele é muito bom." E não sabem desenhar mais ideias a respeito. E muitos acham que estão sendo didáticos ou agradáveis com você, mais jovens, porque pressupõem que jovens só gostam de música ruim, então precisam incentivar seu bom gosto lhe parabenizando. Concedendo-lhe sua falsa complacência. Na verdade, mal sabem que a complacência foi minha, por aturar suas tosses durante toda a apresentação.

Esquecem-se de que música é revolução e poesia, é a arte mais visceral que pode haver ("os ouvidos não têm pálpebras", como escreveu lindamente o espetacular Pascal Quignard, escritor e músico francês). Deve-se ouvir música com o estômago. E qual é o objetivo dela? Música tem objetivo? Quem tem o poder de definir isto? Ela não é só cortina em torno do leito, para acalmar bestas e acalentar bebês. Ela também é chamado para o sexo, canto de guerra, lamento de escravo cativo, uivo do vento, espasmo de terror, agonia, arfar de moribundo, choro de bebê banhado em sangue recém-nascido, miado de gatos, grito de revolução, urro dos que não têm voz. Música é para os que perderam sua expressão. Remeto-vos novamente a Pascal Quignard e uma de suas mais belas obras, "Tous Les Matins du Monde", transformada em filme por Alan Corneau (1991), trilha sonora tocada por Jordi Savall e Le Concert des Nations. O mestre Mr. de Sainte-Colombe toca sua viola da gamba para o fantasma de sua mulher, após ter se isolado das brilhantes plateias e a corte do Rei Sol, fugindo de glórias, para viver música e natureza.

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Bem, eu não vou mais a concertos, a não ser que apareça alguma grande estrela por estas bandas, se conseguir ingresso, ou para observar os violoncelistas, aprender com eles, seus golpes de arco, suas técnicas de mão esquerda, sua interpretação, ou mesmo observar seus vícios. Mas não suporto mais os clichês, os comentários tolos, as orquestras ruins com músicos pedantes e deslumbrados com seu pequeno mundo, as etiquetas excessivas, as brigas por lugar, as performances sofríveis, a multidão competindo com suas bolsas e echarpes sendo de fato tão pouco respeitável quanto a multidão de cabeludos headbangers num show do Sepultura. Se eu quiser ouvir Messiaen ou a Sinfonia dos Mil (que ouvi sentada na areia de Copacabana há dois anos, ao lado do mar, uma experiência que teria sido mística se não fosse a excessiva segurança e mau gosto do regente Karabtchevsky e a grosseria de pessoas que não deveriam estar ali- um homem disse à sua esposa atrás de mim: mas que chatice... para que essa harpinha agora? como se ele entendesse tudo de arranjo e harmonia, dando pitaco no Mahler... aí, Mahler, corrige isso, hein?), vou ouvir no meu quarto, com muito vinho e os melhores intérpretes. E sem plateia ao meu redor para gritar "bravo" no final, com seu ruído de mau gosto, seus papéis de bala e seus comentários complacentes e risíveis. L'enfer, c'est les autres.

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