quinta-feira, 2 de junho de 2011

Quando seguimos em frente...


13.


ERA UMA DESSAS MANHÃS às portas do outono em que a lua conseguia sobreviver ao dia. O sol não aparecia no céu: ele penetrava delicadamente todas as individualidades naturais e urbanas, transpirava em pétalas de flores, edificações antigas e rostos extenuados de passantes.

No holocausto fecundo do tempo que passa, floresciam para os olhos traumatizáveis os únicos verdadeiros edens, aqueles cuja arquitetura se constrói a partir de sensações.

Neste domingo de manhã, Antoine despertou às oito horas. Em meio às ondas entre mescladas que separam o sono da vigília, tinha-lhe parecido ouvir uma canção.

Espreguiçando-se, ele se ergueu. Após ter posto água para esquentar, tomou uma ducha. Uma vez completada a infusão do chá, permaneceu por um instante a olhar o líquido verde e fumegante diante da sua janela. Num galho, um passarinho parecia fazer pose para o álbum da memória de Antoine; o sol de verão exalava um flash permanente na atmosfera. Sem beber uma gota do seu chá, ele pousou a xícara diante da janela e saiu do seu conjugado.

Caminhou até o parque de Montreuil, imiscuindo-se entre os carros e os passantes. Andava depressa, livre de amarras, os cabelos em revolta ainda úmidos. A esta hora, o parque estava praticamente deserto: velhos passeavam, mulheres arejavam os filhos, uma pintora com um chapelão erguera seu cavalete sobre a grama.

Antoine caminhava a passos errantes, como perdido nesse lugar aprazível e calmo. Sentou-se num banco ao lado de um homem velho apoiado na sua bengala de cabo de prata. O velho estava com um chapéu de feltro cinza com uma fita de seda negra; virou ligeiramente a cabeça na direção de Antoine e depois retomou a sua posição de sentinela esgotada.

Antoine olhou na mesma direção e, durante um momento, não viu nada, mas, estreitando os olhos, observando atentamente, percebeu uma mulher jovem precisamente diante dele. Ela perscrutou Antoine, inclinou a cabeça, abaixou-se para examiná-lo como se ele fosse uma escultura e por fim lhe estendeu a mão. Por reflexo de cortesia, Antoine apertou-lhe a mão. Ele quis falar, mas a mulher lhe pôs um dedo sobre os lábios e fez sinal para que se levantasse e a seguisse. Eles afastaram-se do banco e do velho.

- Estou procurando os meus amigos - disse a moça olhando para Antoine, e depois em volta.

- Eles se parecem com quem?

- Com você, talvez. Como você tinha a aparência de ser alguém interessante sentado naquele banco, eu disse a mim mesma que você gostaria muito de ser um dos meus amigos. Você tem uma aparência de ser de boa qualidade. De uma qualidade superior.

- De qualidade superior... Você parece estar falando de um presunto.

- Não, não estou falando de presunto, eu não como carne.

- E você come os seus amigos?

- Eu não tenho amigos, você precisa prestar um pouco de atenção às minhas palavras. Então, como eu digo coisas verdadeiramente assombrosas, é seu papel perguntar-me por quê.

- O meu agente se esqueceu de me mandar a continuação do script. Então... por quê?

- Por que o quê? - perguntou ela fazendo-se de assombrada de maneira muito convincente.

- Por que é que você não tem amigos?

- Eles mofaram. Eu não tinha reparado em que eles tinham prazo de validade. É preciso prestar atenção a isso. Os meus amigos começaram a ter traços de apodrecimento, manchas verdes muitíssimo repugnantes. O que eles diziam começava a verdadeiramente cheirar mal...

- Isso pode ser perigoso.

- Sim, eles teriam podido causar-me uma intoxicação.

-Você os pôs em quarentena?

- Não, não houve necessidade, eles se projetaram sozinhos em suas vidas enfermiças.

-Você é severa.

- Perdoe-me, porém esse não é o seu texto: você deveria ter dito:

“Você é fantástica.”

- Surgem improvisos de última hora no próprio palco.

- Eu sou sempre a última a saber!

A moça parou subitamente e deu um tapa na testa. Ela encarou Antoine, parecendo arrasada, com os olhos arregalados.

- Esquecemos a cena de apresentação! Esquecemos a cena de apresentação! Temos de recomeçar desde o início. Vamos, vamos voltar ao banco.

-Você sabe - respondeu Antoine detendo-a -, a gente poderia fazer umas anotações para garantir a continuidade. É isso que se chama fazer montagem.

-Você tem razão. Caminhemos por alguns instantes sem dizer nada e apresentemos-nos. Ação.

Eles caminharam pelas pequenas alamedas do parque, sobre a relva, olhando as árvores, os pássaros. O tempo estava ameno, o ar tinha uma cor clara e quase cintilante. Nunca o mês de setembro tinha sido tão agradável; ele ignorava ingenuamente o outono que se aproximava, permanecia altivo, de pé, esbanjava as derradeiras forças do verão como se elas fossem infinitas.

- Oh - disse a moça espontaneamente -, eu me chamo Clemente.

- Muito prazer - respondeu Antoine com um tom jovial. - E eu me chamo Antoine.

- Eu estou encantada em conhecê-lo - disse ela apertando-lhe a mão, e depois, após alguns minutos de silêncio, prosseguiu: - Agora, Antoine, retomemos a partir do momento em que você dizia que eu sou fantástica.

- Eu dizia que você é severa.

-Você é muitíssimo injusto. Você não sabe julgar?

- Eu tento, mas é difícil.

- A minha teoria é que se pode compreender e julgar. A gente julga justamente para se defender, porque quem tenta compreender a gente? Quem compreende os que tentam compreender?

- Lacenaire dizia que os únicos que estão capacitados para julgar são os condenados.

- Então, se é assim, nós somos os condenados - disse Clémence abrindo os braços. - Eu sempre fui condenada, desde pequena fui julgada com sentenças silenciosas. E bonito o que eu disse, não?

- Por exemplo?

- Por exemplo: tudo. A sociedade inteira é um julgamento contra mim. O trabalho, os estudos, a música moderna, o dinheiro, a política, o esporte, a televisão, os manequins, os jornais, os automóveis. Isso é um bom exemplo: os automóveis. Eu não posso andar de bicicleta, caminhar
onde queira, desfrutar da cidade: os automóveis condenam a minha liberdade. E eles são fétidos, são perigosos...

- Estou de acordo. Os automóveis são uma calamidade.

Eles compraram algodão-doce. Bicando, arrancando volutas rosa, eles comeram rapidamente, açucarando os dedos e os lábios.

- Outra coisa - disse Clémence. - A meu ver, a grande divisão do mundo, bem, à parte todo esse negócio de classes sociais, a grande divisão do mundo é entre os que vão às festas e os que não vão. E esta divisão da humanidade, que data da época do colégio, persiste toda a vida sob outras formas.

- Eu não era convidado para as festas.

- Eu tampouco. Eles tinham medo, porque eu dizia o que pensava e eu pensava muito mal dos meus colegas. Eu detestava quase todo o mundo.

Era genial. Mas agora, porque perceberam como nós somos fantásticos, eles querem convidar-nos para as festas de adultos, e fazer de conta que nada aconteceu, como se tudo estivesse esquecido. Mas não, nós não iremos.

- Ou então vamos somente para comer salgadinhos e tomar garrafas de Orangina.

- E bater com tacos de beisebol na cabeça de todos eles - disse Clémence simulando o gesto.

- E acabaremos com eles com tacos de golfe, é mais elegante.

- Com classe, com graça.

Discutindo tudo isso, eles deixaram o parque. Caminhavam lado a lado, Clémence saltitava, colhia flores, perseguia os pássaros para tocá-los.

Ela tinha, mais ou menos, a idade de Antoine; por momentos ficava muitíssimo séria e, no instante seguinte, desenvolta e leve, a sua personalidade não cessava de virevoltear. Com ar cândido, ela exclamou abrindo os braços:

- Por que a gente não teria o direito de criticar, de achar certas pessoas babacas e fracas, sob pretexto de que teríamos um clima pesado e ciumento? Todo o mundo se comporta como se fôssemos todos iguais, como se fôssemos todos ricos, educados, poderosos, brancos, jovens, belos, machos, felizes, como se todos estivéssemos com boa saúde, como se todos tivéssemos um carrão... Mas isso, obviamente, não é verdade. Por isso, tenho o direito de gritar, de estar de mau humor, de não sorrir idiotamente todo o tempo, de dar a minha opinião quando vejo coisas não normais e injustas, e até de insultar as pessoas. Tenho o direito de protestar.

- Estou de acordo, mas... isso é fatigante. Podemos fazer isso de um jeito melhor, não?

- Você tem razão - concedeu Clémence.

- E idiota gastarmos toda a nossa energia com coisas com as quais não vale a pena gastá-la. Mais vale guardarmos as nossas forças para nos divertir.

- E para passear na margem do rio.

- Passear na margem do rio... Isso é de uma canção, não?

Clémence cantarolou uma vaga canção. Eles caminhavam na calçada entre a multidão de trabalhadores e desempregados, estudantes, velhos e crianças. As lojas, as padarias, os bancos continuavam cheios desses glóbulos variegados que são os seres humanos no aparelho circulatório da cidade. Um carro passou diante deles buzinando e parou dez metros adiante, num sinal vermelho. Clémence tomou Antoine pelo braço.

- Feche os olhos - pediu-lhe ela. - Eu tenho uma surpresa para você.

Antoine fechou os olhos. Um vento leve e quente eriçou os cabelos dos dois jovens. Clémence conduziu Antoine puxando-o pelo braço; ela o levou para o meio da rua. A uns cem metros, vinha um veículo negro.

- Bem, você já pode abrir os olhos.

- Clémence, está vindo aí um automóvel negro - constatou tranqüilamente Antoine.

-Você prometeu que teria toda a confiança em mim.

- Não, de maneira nenhuma, eu nunca disse isso.

- Ah, sim, eu esqueci de lhe pedir que tivesse toda a confiança em mim. Tenha confiança em mim, certo?

- Clémence, o automóvel...

- Jure que você vai ter toda a confiança em mim e pare de gemer, seu medroso. Você não deve mexer-se, isso é muito importante.Jure.

- Está bem, eu juro. Eu não vou mexer-me, eu não... vou mexer-me...

O carro estava já a não mais de trinta metros, a sua buzina urrava para que os dois jovens saíssem do meio da rua. Antoine e Clémence não se mexiam, os passantes olhavam para eles. No penúltimo instante, Clémence puxou Antoine pelo braço e eles caíram na calçada. O carro negro passou resmungando ferozmente e arreganhando-lhes os dentes.

- Eu salvei a sua vida - disse Clémence. - Eu sou a sua heroína! - Ela se levantou e ajudou Antoine a se pôr de pé. - Isso quer dizer que nós estamos ligados pela vida. Doravante nós somos responsáveis um pelo outro. Como os chineses.

- Eu acho que já tive suficientes emoções por hoje.

- Você tem algum número de emoções que não pode ultrapassar?

- Sim, tenho, é isso, senão corro o risco de morrer de overdose. E não me diga que as overdoses de emoções são geniais, porque não estou acostumado a elas.

Esfomeados por causa da sua vida tão aventurosa, Clémence e Antoine concordaram em ir almoçar no Gudmundsdottir com As, Rodolphe, Ganja, Charlotte e a sua amiga. Entretanto, como ainda faltavam algumas horas para o meio-dia, decidiram brincar de fantasma. Clémence

explicou a Antoine em que consistia essa brincadeira: eles tinham de se conduzir como fantasmas, olhar fixamente para as pessoas nas terrasses dos cafés, passear pelas ruas e pelas lojas ruidosas, ulular, flanar valendo-se da sua invisibilidade, conduzir-se como se tivessem desaparecido dos olhos do mundo. Agitando as suas correntes e levantando os braços de maneira aterrorizadora, Clémence e Antoine começaram a assombrar a cidade.



FIM DO LIVRO

MARTIN


"Como me tornei estúpido" Martin Page Tradução - Carlos Nougué / Ed. Rocco

Título Original “Comment Je Suis Devenu Stupide”