13.
ERA UMA DESSAS MANHÃS às portas do outono em que a lua conseguia sobreviver ao dia. O sol não aparecia no céu: ele penetrava delicadamente todas as individualidades naturais e urbanas, transpirava em pétalas de flores, edificações antigas e rostos extenuados de passantes.
No holocausto fecundo do tempo que passa, floresciam para os olhos traumatizáveis os únicos verdadeiros edens, aqueles cuja arquitetura se constrói a partir de sensações.
Neste domingo de manhã, Antoine despertou às oito horas. Em meio às ondas entre mescladas que separam o sono da vigília, tinha-lhe parecido ouvir uma canção.
Espreguiçando-se, ele se ergueu. Após ter posto água para esquentar, tomou uma ducha. Uma vez completada a infusão do chá, permaneceu por um instante a olhar o líquido verde e fumegante diante da sua janela. Num galho, um passarinho parecia fazer pose para o álbum da memória de Antoine; o sol de verão exalava um flash permanente na atmosfera. Sem beber uma gota do seu chá, ele pousou a xícara diante da janela e saiu do seu conjugado.
Caminhou até o parque de Montreuil, imiscuindo-se entre os carros e os passantes. Andava depressa, livre de amarras, os cabelos em revolta ainda úmidos. A esta hora, o parque estava praticamente deserto: velhos passeavam, mulheres arejavam os filhos, uma pintora com um chapelão erguera seu cavalete sobre a grama.
Antoine olhou na mesma direção e, durante um momento, não viu nada, mas, estreitando os olhos, observando atentamente, percebeu uma mulher jovem precisamente diante dele. Ela perscrutou Antoine, inclinou a cabeça, abaixou-se para examiná-lo como se ele fosse uma escultura e por fim lhe estendeu a mão. Por reflexo de cortesia, Antoine apertou-lhe a mão. Ele quis falar, mas a mulher lhe pôs um dedo sobre os lábios e fez sinal para que se levantasse e a seguisse. Eles afastaram-se do banco e do velho.
- Eles se parecem com quem?
- De qualidade superior... Você parece estar falando de um presunto.
- E você come os seus amigos?
- O meu agente se esqueceu de me mandar a continuação do script. Então... por quê?
- Por que o quê? - perguntou ela fazendo-se de assombrada de maneira muito convincente.
- Eles mofaram. Eu não tinha reparado em que eles tinham prazo de validade. É preciso prestar atenção a isso. Os meus amigos começaram a ter traços de apodrecimento, manchas verdes muitíssimo repugnantes. O que eles diziam começava a verdadeiramente cheirar mal...
- Sim, eles teriam podido causar-me uma intoxicação.
- Não, não houve necessidade, eles se projetaram sozinhos em suas vidas enfermiças.
- Perdoe-me, porém esse não é o seu texto: você deveria ter dito:
- Surgem improvisos de última hora no próprio palco.
A moça parou subitamente e deu um tapa na testa. Ela encarou Antoine, parecendo arrasada, com os olhos arregalados.
-Você sabe - respondeu Antoine detendo-a -, a gente poderia fazer umas anotações para garantir a continuidade. É isso que se chama fazer montagem.
Eles caminharam pelas pequenas alamedas do parque, sobre a relva, olhando as árvores, os pássaros. O tempo estava ameno, o ar tinha uma cor clara e quase cintilante. Nunca o mês de setembro tinha sido tão agradável; ele ignorava ingenuamente o outono que se aproximava, permanecia altivo, de pé, esbanjava as derradeiras forças do verão como se elas fossem infinitas.
- Muito prazer - respondeu Antoine com um tom jovial. - E eu me chamo Antoine.
- Eu dizia que você é severa.
- Eu tento, mas é difícil.
- Lacenaire dizia que os únicos que estão capacitados para julgar são os condenados.
- Por exemplo?
onde queira, desfrutar da cidade: os automóveis condenam a minha liberdade. E eles são fétidos, são perigosos...
- Estou de acordo. Os automóveis são uma calamidade.
- Outra coisa - disse Clémence. - A meu ver, a grande divisão do mundo, bem, à parte todo esse negócio de classes sociais, a grande divisão do mundo é entre os que vão às festas e os que não vão. E esta divisão da humanidade, que data da época do colégio, persiste toda a vida sob outras formas.
- Eu tampouco. Eles tinham medo, porque eu dizia o que pensava e eu pensava muito mal dos meus colegas. Eu detestava quase todo o mundo.
- Ou então vamos somente para comer salgadinhos e tomar garrafas de Orangina.
- E acabaremos com eles com tacos de golfe, é mais elegante.
Discutindo tudo isso, eles deixaram o parque. Caminhavam lado a lado, Clémence saltitava, colhia flores, perseguia os pássaros para tocá-los.
- Por que a gente não teria o direito de criticar, de achar certas pessoas babacas e fracas, sob pretexto de que teríamos um clima pesado e ciumento? Todo o mundo se comporta como se fôssemos todos iguais, como se fôssemos todos ricos, educados, poderosos, brancos, jovens, belos, machos, felizes, como se todos estivéssemos com boa saúde, como se todos tivéssemos um carrão... Mas isso, obviamente, não é verdade. Por isso, tenho o direito de gritar, de estar de mau humor, de não sorrir idiotamente todo o tempo, de dar a minha opinião quando vejo coisas não normais e injustas, e até de insultar as pessoas. Tenho o direito de protestar.
- Estou de acordo, mas... isso é fatigante. Podemos fazer isso de um jeito melhor, não?
- Você tem razão - concedeu Clémence.
- E idiota gastarmos toda a nossa energia com coisas com as quais não vale a pena gastá-la. Mais vale guardarmos as nossas forças para nos divertir.
- E para passear na margem do rio.
- Passear na margem do rio... Isso é de uma canção, não?
- Feche os olhos - pediu-lhe ela. - Eu tenho uma surpresa para você.
Antoine fechou os olhos. Um vento leve e quente eriçou os cabelos dos dois jovens. Clémence conduziu Antoine puxando-o pelo braço; ela o levou para o meio da rua. A uns cem metros, vinha um veículo negro.
- Bem, você já pode abrir os olhos.
- Clémence, está vindo aí um automóvel negro - constatou tranqüilamente Antoine.
-Você prometeu que teria toda a confiança em mim.
- Ah, sim, eu esqueci de lhe pedir que tivesse toda a confiança em mim. Tenha confiança em mim, certo?
- Jure que você vai ter toda a confiança em mim e pare de gemer, seu medroso. Você não deve mexer-se, isso é muito importante.Jure.
O carro estava já a não mais de trinta metros, a sua buzina urrava para que os dois jovens saíssem do meio da rua. Antoine e Clémence não se mexiam, os passantes olhavam para eles. No penúltimo instante, Clémence puxou Antoine pelo braço e eles caíram na calçada. O carro negro passou resmungando ferozmente e arreganhando-lhes os dentes.
- Eu acho que já tive suficientes emoções por hoje.
- Sim, tenho, é isso, senão corro o risco de morrer de overdose. E não me diga que as overdoses de emoções são geniais, porque não estou acostumado a elas.
explicou a Antoine em que consistia essa brincadeira: eles tinham de se conduzir como fantasmas, olhar fixamente para as pessoas nas terrasses dos cafés, passear pelas ruas e pelas lojas ruidosas, ulular, flanar valendo-se da sua invisibilidade, conduzir-se como se tivessem desaparecido dos olhos do mundo. Agitando as suas correntes e levantando os braços de maneira aterrorizadora, Clémence e Antoine começaram a assombrar a cidade.
MARTIN
"Como me tornei estúpido" Martin Page Tradução - Carlos Nougué / Ed. Rocco
Título Original “Comment Je Suis Devenu Stupide”