“Melagkholía” - Este é o termo em grego do qual é derivada a palavra medieval melancolia. A “condição de ter a bílis negra” - formada por mélas, negro e kholé, a bílis - foi definida pelos Irmãos Grimm como uma explicação para o temperamento melancólico. Supunha-se que tal temperamento bem como o abatimento e desalento a ele vinculado eram causados por um excesso de bílis negra, pela “propriedade defeituosa do sangue misturado com bílis negra, queimada.”
Nos dias atuais a definição foi refinada, sendo calcada em diversas causas e explicações diferentes, de acordo com a escola, formação bem como entendimento de mundo de quem a interpreta e de quem a vivencia.
Pois bem.
Ao menos ao meu ver, geralmente entendo que o mundo é composto por realidades objetivas e subjetivas. E, me é curioso perceber as enormes diferenças de interação nestas realidades, pelas pessoas que carregam em sua essência tais traços de melancolia e, portanto, mais suscetíveis ao plano subjetivo, e as pessoas que não possuem tais traços de maneira tão exacerbada.
Neste sentido, penso que o termo melancolia pode ser um tanto enganador. O senso comum costuma associá-lo a incapacidade de aceitar e explicar a existência humana e sua inserção no mundo que nos rodeia. Fala-se do desalento diante da imperfeição deste mesmo mundo, bem como o quanto este estado da alma pode se tornar sombrio; passando do completo desestímulo à existência totalmente desesperançada. Por experiência própria, é a constante sensação da incapacidade plena de se escapar da paralisia, da loucura e da vertiginosa queda atrelada a tudo que é obscuro em vários aspectos do mundo no qual está inserido.
No entanto, existe um outro lado nesta descrição.
Se perguntado para mim se gostaria de me livrar deste eterno estado melancólico, eu, bem como vários outros que costumam transitar pelo lado sombrio da alma, possivelmente teríamos duas respostas diferentes – cada qual, destinadas a momentos específicos. Em meus momentos de maior distanciamento em relação a mim mesmo, possivelmente eu não deixaria a melancolia de lado.
Ora. Se tal característica nos permite uma ligação com os estratos mais profundos da subjetividade do que entendemos por realidade e justamente por isso tornando a realidade em si subjetiva; não é necessária uma perspectiva real de alguma espécie de saída. A melancolia; imersa em um profundo estado de tristeza, para algumas pessoas manifesta-se como uma espécie de companhia do prazer, do belo, do desejo pela transcendência e da erudição.
Neste sentido é interessante perceber que o ideal da melancolia sempre esteve presente como força propulsora das grandes criações artísticas. De fato, é justo dizer que tal conceito não só é uma referência universal nas obras de arte significativas, bem como é um traço psíquico essencial ao espírito criativo.
Me faz pensar em uma coisa interessante. Em partes, a essência das reais belas artes encontra-se na junção de uma profunda tristeza do ser humano derivado de sua consciência de finitude inserida em uma percepção de existência infinita, com idéias tão diversas quanto numerosas em uma infinidade de campos de conhecimento humano. Em outras palavras: A real manifestação artística se dá no momento em que o ser humano tenta descrever os estratos subjetivos da realidade.
Assim, percebe-se que a melancolia não significa apenas o estado de tristeza paralisante. Significa também a possibilidade de uma nostalgia criadora.
De qualquer modo, tal conceito não é novo. Sabe-se da menção no século IV A.c. de uma relação entre a melancolia e a inteligência no círculo Aristotélico, o célebre questionamento: “Por que motivo todos os homens extraordinários, quer tenham-se destacado na filosofia, na política, na poesia ou nas artes plásticas, são notoriamente melancólicos?”
Colocando-se o questionamento Aristotélico sob a luz da definição dos Irmãos Grimm é possível supor que uma “bílis negra” bem dosada, é capaz de dar asas ao estado de ânimo melancólico levando-o a realizações intelectuais fora do comum.
O fato é que tal mecânica da psique a serviço das belas artes está mais presente em toda a história da arte do que geralmente é percebido. Na iconografia Cristã, percebe-se a frequente união do motivo do luto a melancolia, expressa em quase todas as manifestações de arte sacra. Tais trabalhos costumam elevar a melancolia a um outro patamar, no qual a própria paisagem das telas entram como espécie de atores figurantes na representação de determinada cena; sendo frequentes as ambientações em ambientes terrosos, numerosas ruínas e monumentos desmoronados. Mesmo na música sacra, facilmente percebe-se uma inspiração existencialmente melancólica.
No barroco, encontramos a melancolia que gira em torno da finitude. A morte é tida como ponto culminante da alma melancólica e muitas vezes é representada através de alegorias sombrias. No entanto, paradoxalmente é justamente através da expressão artística que a morte não precisa ser definitiva. O valor de uma obra pode se opor ao desaparecimento do artista.
Nos dias atuais, observo um fenômeno interessante:
A expressão artística real muitas vezes está baseada na aliança entre a melancolia e a sensação de cerceamento em um mundo cada vez mais dilacerado. Hoje uma série de atores entram na equação sobre a definição da produção artística. Uma vez mais menciono a música-produto de consumo. É com curiosidade que percebo que a banalização da arte que a transforma em algo descartável; justamente através da melancolia, tende a inspirar vários artistas reais a exercerem uma pressão produtiva igual e contrária em nome da erudição clássica, promovendo uma espécie de resistência contra a arte-produto. É justo dizer que em ultima instância é a melancolia inerente ao espírito do ser humano que dita o que será lembrado mesmo muitas décadas depois, e o que será esquecido dentro em pouco tempo.
Todos os exemplos mencionados acima dividem a mesma origem em termos de mecânica artística: - Na elaboração da obra cujo catalisador é a estética melancólica; as principais fontes das quais o artista utiliza estão o seu microcosmo, como símbolo perfeito do mundo e o macrocosmo, o auto-retrato do artista que reflete sua própria melancolia sobre a a obra na qual ele trabalha. Assim, seja através da música, pintura, literatura etc; o objeto-arte corporifica a essência melancólica e a dor introvertida que queima por dentro sem ser percebida e, portanto, não compreendida, por parte daqueles que rodeiam o artista...
Interessante, não?
Relevantes:
Psicanálise da Arte. Ed. Brasiliense
A Crueldade Melancólica. Ed. Record
A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana, Ed. Record
O Deus Selvagem. Companhia das Letras
Breviário da Decomposição. Ed. Rocco