terça-feira, 28 de agosto de 2007

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta - “As Noivas Tristes do Afeganistão”


Há tempos gostaria de ter sentado para escrever algo sobre os textos e o vídeo abaixo; no entanto as idéias nunca chegararam a fluir completamente.
Talvez porque a reportagem choque. Talvez, porque o texto mostra um lado absurdamente grotesco do ser humano. Ou talvez simplesmente, porque o final do vídeo seja poesia visual pura.

Então, finalmente consegui fazer o link entre o que gostaria de dizer sobre tal reportagem; e para minha surpresa tal link não deve ser feito por minhas palavras; e sim pelo mestre José Saramago...

Talvez ele melhor do que ninguem, tenha entendido suas próprias palavras quando disse:
"(...)Acendemos cigarros em fogos de napalm E dizemos amor sem saber o que seja (...)"

...porque no final, o que nos resta alem da esperança...? As pessoas não costumam perceber que em momentos de dificuldades, os bens mais preciosos que podemos ter, são justamente os sentimentos que são esquecidos durante o dia a dia, quando parece que não existem problemas ao nosso redor e continuamos a navegar em nosso ocidentalismo, sem nos darmos conta do resto do mundo...




Fala do Velho do Restelo ao Astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalm
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalm
.

- José Saramago


Altar de Sacrifícios – “As Noivas Tristes do Afeganistão”


(...)Na visita à capital, Cabul, eles acompanharam um casamento arranjado e, a partir dele, entendemos porquê um movimento de auto-imolação se espalha entre as afegãs. Elas preferem a dor física à dor da humilhação.

Fahima não parece uma noiva feliz. As imagens mostram um casamento arranjado. De um lado do salão só as mulheres. Além delas, podem circular apenas o noivo, seu pai e irmãos.
Do outro lado do tapume, os homens, a banda de música, a alegria.
No lado deles as câmeras são permitidas. O dia em que um homem vira chefe de família tem que ser fotografado e muito comemorado.

Do lado das mulheres, as câmeras não entram. A família abriu uma exceção para que eu filmasse algumas partes da cerimônia com uma câmera pequena e o que ficou registrado foi a profunda tristeza da jovem Fahima.

A tristeza é velha conhecida destas mulheres. Depois de enfrentar quase duas décadas de guerra, elas foram impedidas pelo governo de estudar ou trabalhar e o fim das proibições, há três anos, não mudou muito a situação.

O Afeganistão é um país que ainda vai guardar durante muito tempo as marcas do regime radical talibã. Mesmo na mais cosmopolita de suas cidades, Cabul, ainda não são muitas as mulheres que se atrevem a sair às ruas sem a burca e aquelas que decidiram abandoná-la para usar apenas o véu cobrindo a cabeça ainda são vistas com alguma desconfiança por parte da população local.

As mulheres escondem sob a burca o medo da reação de famílias conservadoras, maridos autoritários e até dos velhos talibãs, que mesmo fora do governo, ainda tentam fazer valer seu ponto de vista.
Pouquíssimas delas voltaram a trabalhar. Na universidade já se podem ver mulheres, mas muitas chegam à escola de burca e só se livram dela na segurança da sala de aula.

Farzana, uma corajosa estudante de medicina, é uma das que encerram sua determinação entre quatro paredes. Não é prudente mostrar, na rua, a boa relação que tem com os colegas de turma do sexo oposto e ela sabe que eles também não poderiam mostrar abertamente que respeitam uma mulher.
"Decidi que não vou me casar", diz ela. Vai ficar solteira pra sempre? Pergunto.
"Talvez! Por aqui eu não seria uma boa esposa", conclui Farzana no tortuoso raciocínio de quem não aprendeu o que é o amor.
Afinal, no Afeganistão, amor não é coisa que se leve em consideração numa relação a dois.

Na enfermaria de um hospital da cidade, a maioria das mulheres não acredita em amor ou em nenhum tipo de sentimento de afetuosidade. Assim como elas, centenas, todos os dias, tomam a decisão de se auto-imolar, no que parece ser um silencioso movimento de protesto das afegãs. Elas se queimam.
Não há estatísticas sobre o problema. Mas o doutor Kamil nos conta que recebe, em Cabul, mulheres queimadas do país inteiro. Faz o possível por elas, dentro dos paupérrimos recursos de que dispõe nesse lugar e sabe que muitas nem chegam a um hospital.
"Em geral, elas vêm de famílias pobres que ainda tratam a mulher como um ser de segunda categoria", diz o médico.

O assunto já motivou campanhas de governo e está sendo acompanhado de perto pela presidente da comissão de direitos humanos do Afeganistão. Amina Afzali diz que estudou muitos destes casos e afirma que quase todos vêm de casamentos forçados que não têm chance alguma de dar certo. "Às vezes, há diferenças enormes de idade e, às vezes, a noiva é muito mal tratada pela família e especialmente pela mãe do noivo, então ela se imola".

É quase um movimento político destas mulheres que não podem gritar de outra forma. Foi a última e desesperada ação possível para Runah, Parimah, Shrango.
Nazefa tem dezoito anos e um filho. Apesar de ser jovem e de ser mãe, decidiu encerrar seu sofrimento jogando gasolina ao corpo e acendendo um fósforo. "Ela era tratada pela sogra como uma escrava", conta a enfermeira.
Situação muito comum. No casamento arranjado de Fahima, é claríssima a cumplicidade entre o noivo e sua mãe. Foi ela quem escolheu uma mulher para o filho. A jovem esposa é a intrusa na relação.
Vai passar a viver numa casa onde os papéis estão bem definidos e onde os homens podem tudo, inclusive o que é proibido. Bebidas alcoólicas são proibidas pela religião, mas os convidados ao casamento não pareciam sóbrios.

O poder masculino, acima de qualquer lei e além de qualquer limite, mata de alguma forma a condição feminina. Fahima, a noiva, é a repetição da história de Nazefa e Farzana, a estudante, também desistiu de sonhar.

Em toda a Cabul, flagramos dois únicos amantes que, de longe, pareciam buscar um lugar para o discreto flerte e agiam como quem precisa se esconder.





Ana Paula Padrão - Afeganistão (06/2000)





Ana Paula Padrão - Depoimento
por diógenes campanha




O Afeganistão hoje faz parte da minha vida.” É assim que Ana Paula Padrão define sua relação com o país asiático que visitou três vezes na época que apresentava o Jornal da Globo. A primeira, em junho de 2000, quando foi tirada a foto acima, na qual a jornalista aparece, no deserto, com o tradicional véu usado pelas mulheres muçulmanas. Embora tenha se preparado um ano e meio para gravar uma série de reportagens no país, então dominado pelo regime fundamentalista do Taleban, Ana Paula conta que se surpreendeu ao chegar ao destino. “Nunca vou esquecer a minha entrada no país. A impressão visual era muito chocante, foi como entrar em uma máquina do tempo”, diz. Encontrou um cenário medieval, onde as mulheres não saíam de casa, os mercados de rua eram precários e o comércio formal, praticamente inexistente. Para fazer as matérias, Ana Paula e sua equipe – o cinegrafista Hélio Alvarez e a produtora Guta Nascimento – assinaram um termo se comprometendo a não filmar nenhum ser vivo (“Ser vivo mesmo, incluindo cachorro”, frisa ela) sem a permissão do governo, sob penas que iam de perder as mãos ao fuzilamento em praça pública. Como filmaram secretamente escolas femininas clandestinas e centros comunitários para mulheres, tiveram que fugir da capital Cabul e acamparam duas noites no deserto. “Em nenhum momento tive medo de morrer, mas meu maior medo era perder essas fitas”, diz Ana Paula. Uma situação tensa, definida por ela como “um perrengue clássico”,

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