segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

H. R. Giger – O lado sombrio da Biomecânica



Uma das coisas interessantes em se ter uma certa morbidez encravada dentro da alma, é o gosto normalmente totalmente fora do convencional para padrões de estética. Ver beleza e paz aonde a maioria das pessoas costumam enxergar o frio e a perturbação.


Ontem desenterrei alguns velhos livros de arte surrealista aqui em casa, e me deparei com dois ou três álbuns do suíço H.R.Giger.


H.R.Giger, para quem não conhece o cidadão, é mais conhecido no mainstream artístico pelo seu premiado design tanto do corpo quanto do meio ambiente de “Aliens” de 1979, tento conquistado o Oscar em 1980 pelo mesmo.



Me pergunto o que se passa na mente deste cara, é um mistério.


Hans Ruedi Giger nasceu em Chur, uma pequena cidade da Suíça, em 5 de fevereiro de 1940. Suas imagens detalhistas, realizadas em um estilo bastante peculiar, retratam paisagens e ambientes claustrofóbicos, habitados por seres monstruosos, amálgamas de elementos orgânicos e mecânicos.


Desde muito novo, Giger desenvolveu um gosto por coisas mórbidas e estranhas. Muitas das suas inspirações de início de carreira vinham de artistas como Arnold Böcklin, Jean Cocteau e Salvador Dali, de cujas obras colecionava reproduções (com Dali, inclusive, Giger chegaria a manter contatos pessoais, em meados da década de 1970). Giger partilhava com os chamados Surrealistas hábito como a leitura de Sigmund Freud, o cultivo do automatismo psíquico e a utilização de sonhos como matéria-prima de suas pinturas.


Além disso, interessava-se por escritores de literatura fantástica e ficção científica, em especial por Howard P. Lovecraft, inspirado no qual realizaria as ilustrações para o seu álbum mais famoso, o Necronomicon (1977).


Giger estudou Arquitetura e Desenho Industrial na Escola de Artes Aplicadas de Zurique, onde teve uma formação bastante variada. Além de pinturas, trabalhou desde cedo com decoração de interiores, escultura e cenografia. Essa atividade múltipla o ajudaria mais tarde a ingressar na indústria cinematográfica, para a qual contribui com certa assiduidade nas últimas décadas. Tendo começado a trabalhar para Hollywood em meados dos anos 1970, criou cenários e figurinos para alguns filmes, sempre com seu estilo particular.


Foi porém o seu trabalho em Alien, de Ridley Scott, que o tornou mundialmente famoso. Por esses seus trabalhos em Alien, Giger ganharia, inclusive, em 1980, o Oscar de Efeitos Visuais.

Trabalhou também como designer de revistas e de capas de discos, sendo hoje especialmente cultuado pelos leitores de histórias em quadrinhos, tatuadores e fãs de rock pesado. Provavelmente, essa sua ligação estreita com os meios de comunicação de massa contribuiu para que a historiografia e a crítica especializada de arte não considerasse seu trabalho digno de maiores atenções. Contemporâneo de movimentos como a Arte Minimalista e Conceitual, seu estilo figurativo carregado de implicações metafóricas, parecia a essa mesma crítica no mínimo anacrônico. Mesmo a execução de suas imagens, realizadas com a técnica do aerógrafo, que o artista passou a usar majoritariamente a partir da década de 1970, parecia mais relacionada ao mundo da ilustração publicitária e do kitsch, do que propriamente ao da chamada arte “erudita”.


Se à sua obra é comumente associado o termo grotesco em seu sentido corriqueiro, bizarro, disforme e monstruosa, sendo isso função óbvia dos temas por ele abordados, cumpre reconhecer que ela deve ser também relacionada ao sentido etimológico mais específico da palavra grotesco e ao estilo ornamental que tem essa mesma denominação.

"Aos retratos do mundo real, prefere-se agora pintar monstros nas paredes. Em vez de colunas pintam-se talos canelados, com folhas crespas, e volutas em vez da ornamentação dos tímpanos, bem como candelabros que apresentam edículas pintadas. Nos seus tímpanos brotam das raízes flores delicadas que se enrolam e desenrolam, sobre as quais se assentam figurinhas sem o menor sentido. Finalmente os pedúnculos sustentam meias figuras, umas com cabeça de homem, outras com cabeça de animal. [*]"


Tal tipo de ornamentação era condenada por críticos que, a exemplo de Vitrúvio, recriminavam veementemente o estilo por ser uma violação dos critérios de verdade natural. O grotesco não tinha apenas um caráter lúdico e decorativo mas continha, em última análise, algo de sinistro e angustiante. Parafraseando Wofgang Kaiser, um dos principais estudiosos do assunto, o mundo apresentado no grotesco é totalmente diferente do habitual: nele estão anuladas as ordens da natureza, isto é, o reino das coisas inanimadas não está mais separado daquele das plantas, dos animais ou dos seres humanos, e nele as leis da estática, da simetria e das proporções tem sua validade relativizada.

A justaposição de elementos oriundos das mais diversas categorias da natureza e da cultura é um recurso comum nas obras fantásticas, da Antiguidade até o Surrealismo. Na obra de Giger, muitos desses elementos pertencem ao universo da magia negra (cruzes, bruxas, o bode, o sudário, etc.) e alguns dos motivos são amálgamas de disparidades.


A utilização ornamental de motivos orgânicos como ossos ou vísceras é bastante freqüente em Giger, e é comum a associação entre a obra de Giger e os sentimentos de mal-estar, angústia e neurose. Especialmente as recorrentes alusões sexuais, mais ou menos veladas, presentes nas imagens do artista suíço parecem confirmar uma disposição mental pouco “sadia”.

A loucura é também amiúde relacionada ao gênero grotesco, pois, como afirma Kaiser, "o encontro com a loucura é como uma das percepções primigênias do grotesco que a vida nos impinge". E, de fato, podemos encontrar na arte dos alienados procedimentos compositivos semelhantes àqueles que acima sucintamente descrevi.


Também é comum na obra de Giger, assim como na dos alienados, a ocorrência daquilo que Arnheim chama de "trocadilhos visuais", isto é, "a fusão de elementos heterogêneos na base da semelhança externa". Tal é particularmente o caso com relação às referências de caráter sexual presentes na obra de Giger, que denotam um afastamento com relação às interações significativas existentes na realidade.


Tais observações indicariam os supostos limites da arte de Giger? Apesar de seu aspecto assustador, esta não passaria de um jogo formalístico unilateral, baseado em uma ordenação simples e alienada das vicissitudes da vida, em suma, incapaz de referir-se, como faz a arte “autêntica”, à existência em todos os seus aspectos essenciais e contraditórios?


Esse seria, certamente, um julgamento severo, que desconsideraria os diversos pontos interessantes que a obra de Giger apresenta. Outra convergência mais positiva entre as motivações profundas de Giger e as do grotesco podem ser intuídas das próprias declarações do artista, que muitas vezes disse ter pintado seres, situações ou ambientes oriundos de seus próprios pesadelos, com o intuito de tentar superar os medos por eles gerados. Nesse sentido, as imagens de H. R. Giger, à primeira vista doentias e repulsivas, não deixariam de desempenhar uma nobre função: materializando o obscuro, o sinistro e o inconcebível, elas permitiriam a todos nós, se não vencer, ao menos tomar consciência e conviver melhor com os aspectos negativos da existência.

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[*] "Nam pinguntur tectoriis monstra potius quam ex rebus finitis imagines certae: pro columnis enim statuuntur calami, pro fastigiis harpagae et mituli striati cum crispis foliis et volutis, item candelabra aedicularum sustinentia figuras, supra fastigia earum surgentes ex radicibus cum volutis coliculi teneri plures habentes in se sine ratione sedentia sigilla, non minus etiam ex cauliculis flores dimidiata habentes ex se exeuntia sigilla, alia humanis, alia bestiarum capitibus similia". VITRUVIUS POLLIO, Marcus. De Architectura, livro VII, capíitulo 5, 3.