quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ideias e rios




Dia desses estava olhando meus papéis e ouvindo alguma peça de Bach, provavelmente uma das suites para cello (aliás, recomendo a excelente gravação de Jean Guihen Queyras), e tive esse relance de percepção sobre como surgem as obras majestosas, e como se estruturam as mais sofisticadas teorias, como nascem e se estabelecem fantásticas ideias. De fato, estama me sentindo tensa e passava por um momento de grande confusão mental pelo estresse. Quando me lembrei do meu professor de violoncelo dizendo: relaxe o ombro... vá devagar com a mão esquerda... você só poderá tocar bem se tiver consciência plena do que está acontecendo, e isto só ocorrerá se você fizer tudo muito devagar e pausadamente, nota a nota...

Então me ocorreu esse resto de pensamento vadio: uma grande teoria surge apenas depois que a primeira minúscula centelha surge na mente de quem cria, e desenvolve-se calmamente, passo a passo, reunindo-se a pequenos teoremas, lemas, afirmações, retalhos de demonstrações, até ser totalmente refeita de forma elegante e abstrata, completamente geral, donde surge a impressão de que o matemático ou cientista teve um grande ataque genial, uma revelação divina, quando Deus himself derramou toda a sua luz num relâmpago sobre o pobre trabalhador do intelecto.

Da mesma forma, a música, a poesia, ou mesmo qualquer outra atividade não-artística ou não-científica. O trabalho da colmeia é divino, mas perdura por um longo período de repetições e minúsculos passos e acréscimos, ao custo de muitas perdas e recriações. O famoso conjunto de Mandelbrot, relativo ao matemático que criou a ideia de fractal, é uma representação disto.


Mas quero mesmo é falar de música, e não poderia ser diferente, é sobre ele mesmo, J.S. Bach, que estamos a divagar. O famosos livro de D. Hofstadter, "Godel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid", apresenta a ideia de fractalidade, recursividade, repetição, em suma, e mais do que tudo, simetria. Isso via as obras destes três gênios (o lógico, o artista plástico, o músico), com uma autoridade tamanha que é melhor eu deixar o resto com vocês, procurar este livro mágico e devorá-lo. Em particular, uma longa análise de simetrias na simplicidade do início de várias partituras do gênio alemão revela a suprema consciência por parte do artista, a total devoção a algo maior que a humanidade e o tempo, mas que somente o tempo pode proporcionar. O cânone "caranguejo", com a simetria reflexiva, é um símbolo desta construção, e como a natureza proporciona diversos exemplos, aparentemente estamos nos domínios de algum padrão cósmico de beleza e profundidade. Isso é o que assusta.

Mas o que tem me perseguido e feito muito bem é a naturalidade deste conceito, de grandiosidade construída silenciosamente e em pequenos passos, com pequenas variações e pausas, humildade e perseverança. Como os rios mais caudalosos, originados de pequenas gotas derretidas de montanhas geladas, ou ínfimas fotes em grutas, que vão se alimentando de chuvas, riachos e afluentes, até encontrarem o grande mar em revolução pela sua força e grandiosidade. Parece-lhes um ensaio moral? Pode ser. Sinto-me mais serena quando reflito sobre isso, como que inserida na Eternidade. Isto seria uma forma de teísmo, de reconhecimento do trabalho de um Deus como modelo para todas as atividades, para a vida, "o Universo e tudo o mais"? Ou uma revelação búdica, ou um reencontro com o Tao?

Aliás, uma pausa para os nossos patrocinadores: recomendo também o disco "The Tao of the Cello", de David Darling, onde cada peça é inspirada um verso do livro de Lao Tsu. ;)


Bem, eu já não sei mais do que estou falando a essa altura, mas vale a pena conferir a sequência de videos com a "Oferenda Musical" de Bach, que ilustra esta ideia, citada no livro de Hofstadter, e o simples (pequena fonte) cânone (cujo início é mostrado) que serve de espinha dorsal à criação do grande mestre barroco. O video faz silenciosamente o paralelo com outra atividade humana, através de algumas das fantásticas criações de Escher. Have fun.




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