terça-feira, 27 de julho de 2010

"Melagkholía" - Da melancolia para as artes


Melagkholía” - Este é o termo em grego do qual é derivada a palavra medieval melancolia. A “condição de ter a bílis negra” - formada por mélas, negro e kholé, a bílis - foi definida pelos Irmãos Grimm como uma explicação para o temperamento melancólico. Supunha-se que tal temperamento bem como o abatimento e desalento a ele vinculado eram causados por um excesso de bílis negra, pela “propriedade defeituosa do sangue misturado com bílis negra, queimada.”


Nos dias atuais a definição foi refinada, sendo calcada em diversas causas e explicações diferentes, de acordo com a escola, formação bem como entendimento de mundo de quem a interpreta e de quem a vivencia.


Pois bem.


Ao menos ao meu ver, geralmente entendo que o mundo é composto por realidades objetivas e subjetivas. E, me é curioso perceber as enormes diferenças de interação nestas realidades, pelas pessoas que carregam em sua essência tais traços de melancolia e, portanto, mais suscetíveis ao plano subjetivo, e as pessoas que não possuem tais traços de maneira tão exacerbada.


Neste sentido, penso que o termo melancolia pode ser um tanto enganador. O senso comum costuma associá-lo a incapacidade de aceitar e explicar a existência humana e sua inserção no mundo que nos rodeia. Fala-se do desalento diante da imperfeição deste mesmo mundo, bem como o quanto este estado da alma pode se tornar sombrio; passando do completo desestímulo à existência totalmente desesperançada. Por experiência própria, é a constante sensação da incapacidade plena de se escapar da paralisia, da loucura e da vertiginosa queda atrelada a tudo que é obscuro em vários aspectos do mundo no qual está inserido.


No entanto, existe um outro lado nesta descrição.


Se perguntado para mim se gostaria de me livrar deste eterno estado melancólico, eu, bem como vários outros que costumam transitar pelo lado sombrio da alma, possivelmente teríamos duas respostas diferentes – cada qual, destinadas a momentos específicos. Em meus momentos de maior distanciamento em relação a mim mesmo, possivelmente eu não deixaria a melancolia de lado.


Ora. Se tal característica nos permite uma ligação com os estratos mais profundos da subjetividade do que entendemos por realidade e justamente por isso tornando a realidade em si subjetiva; não é necessária uma perspectiva real de alguma espécie de saída. A melancolia; imersa em um profundo estado de tristeza, para algumas pessoas manifesta-se como uma espécie de companhia do prazer, do belo, do desejo pela transcendência e da erudição.


Neste sentido é interessante perceber que o ideal da melancolia sempre esteve presente como força propulsora das grandes criações artísticas. De fato, é justo dizer que tal conceito não só é uma referência universal nas obras de arte significativas, bem como é um traço psíquico essencial ao espírito criativo.


Me faz pensar em uma coisa interessante. Em partes, a essência das reais belas artes encontra-se na junção de uma profunda tristeza do ser humano derivado de sua consciência de finitude inserida em uma percepção de existência infinita, com idéias tão diversas quanto numerosas em uma infinidade de campos de conhecimento humano. Em outras palavras: A real manifestação artística se dá no momento em que o ser humano tenta descrever os estratos subjetivos da realidade.


Assim, percebe-se que a melancolia não significa apenas o estado de tristeza paralisante. Significa também a possibilidade de uma nostalgia criadora.


De qualquer modo, tal conceito não é novo. Sabe-se da menção no século IV A.c. de uma relação entre a melancolia e a inteligência no círculo Aristotélico, o célebre questionamento: “Por que motivo todos os homens extraordinários, quer tenham-se destacado na filosofia, na política, na poesia ou nas artes plásticas, são notoriamente melancólicos?”


Colocando-se o questionamento Aristotélico sob a luz da definição dos Irmãos Grimm é possível supor que uma “bílis negra” bem dosada, é capaz de dar asas ao estado de ânimo melancólico levando-o a realizações intelectuais fora do comum.


O fato é que tal mecânica da psique a serviço das belas artes está mais presente em toda a história da arte do que geralmente é percebido. Na iconografia Cristã, percebe-se a frequente união do motivo do luto a melancolia, expressa em quase todas as manifestações de arte sacra. Tais trabalhos costumam elevar a melancolia a um outro patamar, no qual a própria paisagem das telas entram como espécie de atores figurantes na representação de determinada cena; sendo frequentes as ambientações em ambientes terrosos, numerosas ruínas e monumentos desmoronados. Mesmo na música sacra, facilmente percebe-se uma inspiração existencialmente melancólica.


No barroco, encontramos a melancolia que gira em torno da finitude. A morte é tida como ponto culminante da alma melancólica e muitas vezes é representada através de alegorias sombrias. No entanto, paradoxalmente é justamente através da expressão artística que a morte não precisa ser definitiva. O valor de uma obra pode se opor ao desaparecimento do artista.


Nos dias atuais, observo um fenômeno interessante:


A expressão artística real muitas vezes está baseada na aliança entre a melancolia e a sensação de cerceamento em um mundo cada vez mais dilacerado. Hoje uma série de atores entram na equação sobre a definição da produção artística. Uma vez mais menciono a música-produto de consumo. É com curiosidade que percebo que a banalização da arte que a transforma em algo descartável; justamente através da melancolia, tende a inspirar vários artistas reais a exercerem uma pressão produtiva igual e contrária em nome da erudição clássica, promovendo uma espécie de resistência contra a arte-produto. É justo dizer que em ultima instância é a melancolia inerente ao espírito do ser humano que dita o que será lembrado mesmo muitas décadas depois, e o que será esquecido dentro em pouco tempo.


Todos os exemplos mencionados acima dividem a mesma origem em termos de mecânica artística: - Na elaboração da obra cujo catalisador é a estética melancólica; as principais fontes das quais o artista utiliza estão o seu microcosmo, como símbolo perfeito do mundo e o macrocosmo, o auto-retrato do artista que reflete sua própria melancolia sobre a a obra na qual ele trabalha. Assim, seja através da música, pintura, literatura etc; o objeto-arte corporifica a essência melancólica e a dor introvertida que queima por dentro sem ser percebida e, portanto, não compreendida, por parte daqueles que rodeiam o artista...


Interessante, não?







Relevantes:


Psicanálise da Arte. Ed. Brasiliense

A Crueldade Melancólica. Ed. Record

A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana, Ed. Record

O Deus Selvagem. Companhia das Letras

Breviário da Decomposição. Ed. Rocco



4 comentários:

Cecil disse...

Oi Andreas. Esse blog tá ficando bonito...

Como sempre, inteligente e instrutivo o seu texto.

Creio que haja diversas "melancolias". A melancolia quase alegre (singeleza que disfarça uma profunda depressão e uma batalha espiritual num espírito refinado) de um Nick Drake, a melancolia que já desistiu (a canção "Gloomy Sunday", ou ainda conhecida como "Hungarian Suicide Song"), a melancolia dos que tudo estão vendo e não acham graça em mais porra nenhuma mas vão vivendo com uma cerveja e um cigarro, a melancolia esperançosa, a melancolia amorosa, a melancolia amarga... acho que a melancolia cristã tem mais culpa do que melancolia. Culpa pela morte de Cristo,pois no fundo creio que os cristãos se sentem culpados pela crucificação apesar dos judeus (na lenda, seja ela verdadeira ou não).

Respondendo à pergunta de Aristóteles, ou pelo menos tentando, acho que pessoas sábias facilmente tornam-se meio amargas e melancólicas, e não o contrário, e isto porque não há aprendizado nesta vida, de qualquer ordem, nem qualquer sensibilidade ao estado puro de existir e participar do mundo sem experiências profundamente tristes ou aterrorizantes. Esas experiências passam por nós e deixam marcas como tempestades deixam marcas nas margens dos rios, tornando as árvores mais fortes mas mais tristes e curvadas. Quem vive e quem vê... esses não podem ser plenamente alegres, com aquele alegria de plástico dos que têm medo da melancolia. Ver as coisas como elas são dói, machuca, não se pode sorrir da mesma forma se você viu o que realmente há para ser visto, e se frequentemente lembrar de quanta feiúra existe neste momento, de quanto horror e escuridão.

Agora, acredito que vivemos num tempo de caça aos melancólicos. Ser melancólico ou demonstrar preocupção, tristeza ou alguma forma de amargura suave que seja é pedir para não ser amado, é ser excluído dos métiers sociais, é ganhar menos dinheiro na indústria de entretenimento. A música de consumo é a prova de que luzes, gloss e coreografias estão aí para mandar a melancolia de um Leonard Cohen pro baú do esquecimento popular. Eu mesma tenho perdido e às vezes cortado amizades por ser criticada com frequência nestes termos (maluca, deprê, amarga, etc). Somos as bruxas de Salem do século das luzes (de néon).

beijos, Andreas.

Anônimo disse...

Existem divergências a respeito de "O Homem de Gênio e a Melancolia" de Aristóteles. Digo, muitos acreditam que o texto original não é de Aristóteles, mas sim de um dos membros do círculo Aristotélico.. De qualquer modo pelo visto, nunca saberemos com exatidão...

É difícil dizer os porquês das pessoas se tornarem melancólicas, acho que em parte tem realmente a ver com o sentimento de impotência diante do todo, e isso varia de pessoa para pessoa. Afinal, existe aquela classe de pessoas que sequer enxergam o todo - por realmente não ligarem para isso ou por pura incapacidade cognitiva - e vivem muitíssimo bem com isso.

Seria esta na verdade uma diferença estrutural em termos de psique? Difícil dizer. Mas o que afirmo com certeza absoluta é que, geralmente as pessoas dotadas de uma inteligência um pouco mais exacerbada bem como uma sensibilidade maior de fato, tendem a melancolia. Ora, vejo isso em meu dia a dia. Entre os meus amigos, os que chegaram mais longe academicamente dizendo, todos nutrem uma espécie de melancolia saudosista; e isto independe de qualquer sistema de crenças, por exemplo. (Religiosos de plantão; o recado esta dado, nem venham!!)

Dois fatos a serem considerados; geralmente os melancólicos possuem sim uma nítida capacidade de enxergar o "belo" aonde a maioria não enxerga. A magia do anoitecer, os mistérios da escuridão, o jogo de luzes que se apresenta em ambientes com uma luz difusa - seja em um arvoredo imerso em uma espessa neblina com luzes ao longe ou seja em uma sala iluminada por algumas velas durante uma madrugada e uma musica suave ao fundo - tendem a tocar de maneiras muito mais profundas os melancólicos, do que os que diriam: "nossa, está escuro! liga a luz!". rs

Particularmente dispenso a luz...

Sobre este, a tal "luz"; existe um livro interessantíssimo chamado "Noite - A vida noturna, a linguagem da noite, o sono e os sonhos", do ensaísta Britânico A.Alvarez (Cujo outro título "O Deus selvagem" deixei como "relevantes" no final deste texto)que versa a respeito da nossa relação com a noite e a escuridão.

Concordo totalmente com você Cecil quando diz que vivemos uma época de caça aos melancólicos. O mesmo já ocorreu comigo, chegando ao cúmulo das épocas da faculdade, uma garota que trabalhava em uma empresa ter 'queimado' o meu filme após uma entrevista cuja vaga já era certa, por eu ser "estranho" aos olhos dela. (Por estranho, inclui-se aí o temperamento melancólico e um tanto isolacionista de certo modo.)

Raios. Não sou feliz aos modos da sociedade, mas nutro uma espécie de felicidade própria de uma maneira bem diversa do conceito que a sociedade prega. Então penso; quem é a sociedade para julgar quem possui um temperamento melancólico? Sim, em alto e bom som, foda-se o mundo com todas suas máscaras, valores e convenções sociais. Foda-se o enquadrar-se ao "jeito de ser" da massa. Enquanto tenho meu Cello, minha garrafa de vinhos, uma caneta, um caderno e uma enorme seleção de bons livros e músicas, sinceramente há muito não faço questão de pessoas para dizer que sou socialmente ativo e apontar o "erro" (de acordo com elas) da minha própria melancolia...

Sejamos viscerais! Abaixo a hipocrisia! Nem que para isso, a solidão se torne a nossa companhia...

(Ademais, por algum motivo sempre fiquei com um pé atrás em relação aos que sorriem demais... rs Vai saber, né...)

Beijos, Cecil...

Tami l'etrange disse...

Hey! Como sempre, suas postagens estão incríveis. Tanto você quanto os outros moderadores sempre trazem assuntos intereçantes, instrutivos, bastante inteligentes e bem elaborados. E o blog está ficando lindo! Parabéns ^^


Beijos

Anônimo disse...

Que lufada de ar fresco encontrar textos que abordam de forma tão suave assuntos inerentes à existência humana e por ora encobertos por véus de ilusão, traquitanas criadas para desfocar a atenção do âmago existencial. A necessidade de perene felicidade, de uma existência solar imposta nos torna plásticos e artificiais, nos afastando de nossa possível missão existencial que é evoluirmos em diferentes aspectos enquanto aqui estamos. A melancolia é tão natural e atávica quanto qualquer outro estado da alma e nos mantém conectados ao mundo, já que ela deriva da nossa observação do mundo, de tudo que não entendemos e de tudo que entendemos e não aceitamos. Talvez a melancolia seja um primeiro estado de negação do que achamos que não nos serve e um preludio para movimentamos a energia de mudança ao nosso redor. Um ode ao que não nos satisfaz e nos desperta a sensação de erro!