E, aproveitando o post anterior referente a magistral Cellista Portuguesa Guilhermina Suggia, disponibilizo aqui um texto escrito por ela para a revista “Music and Letters”, em Abril de 1921.
Acho bacana este texto, pois possui algumas considerações muito válidas a respeito do instrumento, sua sonoridade, a técnica e feeling necessários para uma execução e interpretação razoáveis.
Este material se encontra publicado no livro "GUILHERMINA SUGGIA ou o Violoncelo Luxuriante” de Fátima Pombo, infelizmente fora de catálogo.
Uma pena!
Em tempo, a formatação original bem como expressões em Português de Portugal, foram mantidas.
Tocar violoncelo ("Music and Letters" - Abril de 1921)
Desde que escrevi sobre o violoncelo para Music and Letters (vol I, nº 2) fui solicitada, de vários quadrantes, a falar mais a seu respeito e especificamente sobre a sua sonoridade.
Uma grande técnica no violoncelo sem uma boa sonoridade não é agradável. Uma boa sonoridade não depende somente do fabricante do instrumento e é um facto que quanto melhor o instrumento, mais este parece exigir um bom executante. Muitos amadores têm a sorte de possuir os melhores instrumentos e, no entanto, ao passarem o arco pelas cordas poder-se-ia pensar que estavam a tocar naquilo que se pode chamar um instrumento feito em série. Suponho que se deve verificar isto em muitas coisas – quanto melhor o objecto, mais cuidado deve ser o seu tratamento. Vista-se um belo vestido a uma campónea sem jeito e tanto a rapariga como o vestido parecerão grotescos, enquanto que a mesma rapariga vestida com uma simples roupa de campo pode parecer até bastante atraente.
O mundo é unânime em afirmar que o violoncelo é o mais glorioso instrumento que os deuses jamais criaram; no entanto bem poucos são os violoncelistas que contribuíram para a sua glória.
Devemos muito de bom a muitos dos violoncelistas da geração passada, mas também lhes devemos muito de mau. Nos últimos 15 anos tem-se verificado um tal avanço na escola de violoncelo que creio que, se fosse possível ouvir tocar esses grandes virtuosos da geração passada ficaríamos surpreendidos por verificar que não nos agradariam tanto quanto os nossos antepassados. O violoncelo era, então, ainda jovem e estava apenas num estado transitório. Ainda me lembro que na minha juventude era impossível a um violoncelista auferir o mesmo pagamento que um violinista ou pianista, e que em algumas grandes cidades da Alemanha o violoncelo como instrumento a solo não era de todo apreciado; e lembro-me também que foi permitido a uma determinada violoncelista tocar em Munique apenas devido aos seus dotes físicos. Também se pode inferir que o violoncelo não era um instrumento solista pelo seu reportório. No meu artigo de Abril passado, pretendi mostrar como há muito poucas peças realmente de qualidade que tenham sido compostas para este instrumento a solo. Creio que isto se deve ao facto de, no passado, os compositores recearem compor para violoncelo, por este não ter sido concebido para interpretar verdadeira música. Existem há muitos anos algumas peças de grande valor, mas estas não devem ter recebido interpretações que lhes fizessem justiça, pois têm sucessivamente caído no esquecimento. O estudo do violoncelo – não há dúvida quanto a isso . tem sido abordado de forma incorrecta e estamos ainda hoje a sofrer as consequências. Provavelmente desenvolveu-se a técnica em detrimento da sonoridade, ou vice-versa; e se houve quem combinasse boa técnica com boa sonoridade, faltava-lhe a musicalidade. Ainda existem, perante o público, duas classes de executantes imperfeitos. O virtuoso sem musicalidade e o bom músico sem técnica. Pessoalmente, acho este último o menos nocivo dos dois; porque um tal instrumento pode, pelo menos, escolher peças que estejam de acordo com as suas limitações técnicas, enquanto que o mero virtuoso tentará tocar todas as grandes peças sem nenhuma reverência pelas ideias musicais do compositor, destruindo, assim, a essência dessas obras.
Chegou o dia em que as pessoas tomaram consciência de que o estudo da técnica e da sonoridade são indissociáveis no estudo da música. Tudo deve ser preparado visando o ideal de poder interpretar um trabalho dando-lhe o seu verdadeiro significado e não destacando a sonoridade, a técnica ou o vibrato.
O estudo do vibrato é um elemento muito importante na arte de interpretar. Gostaria de dizer algo sobre as diferentes utilizações deste ramo particular da técnica. Tal como as melodias variam, tal como varia a velocidade dos movimentos, assim variam os meios que utilizamos para exprimir estas diferenças, e uma das formas mais subtis de dar a interpretação exacta à melodia não é somente o conhecimento de quando fazer vibrato, ou se este deve ser rápido ou lento, mas também a intuição da adequação do vibrato ao espírito da peça. Talvez me torne ,mais explícita citando obras que todo o violoncelista deve conhecer. Se considerarmos a abertura das Variações de Böllmann e tocarmos este tema tal como o sentimos, devemos utilizar um vibrato rápido e frequente. Consideremos agora o tema inicial da Sonata em Lá de Beethoven. Aqui praticamente não precisamos de nenhum vibrato. Estes dois casos são extremos e por isso fáceis de seguir; mas se considerarmos a abertura do Concerto em Lá Menor de Schumann, o vibrato torna-se mais largo e lento, porque deve exprimir uma melodia cheia de sentimento. Ora, se um violoncelista executar estes exemplos utilizando somente um tipo de vibrato logo se aperceberá que alguns soam mal, quase ridículos; curiosamente, tal como uma pintura em que um pormenor discordante estraga toda a composição, também as interpretações de uma peça musical, quando qualquer aspecto é tocado de uma forma ignorante, mesmo que se trate apenas de vibrato, toda a perspectiva da peça é afectada. O vibrato em si é talvez o aspecto mais insignificante de todos os meios de interpretação, mas o abuso de vibrato pode arruinar completamente qualquer execução.
É necessário, vital até, saber distinguir entre um bom e um mau vibrato. Não depende só da velocidade mas também da qualidade que, juntamente com a pressão de ar, dá colorido à sonoridade. Não basta agitar a mão e o cotovelo para cima e para baixo ou virar os dedos de lado para os pontos. Um movimento demasiado rápido irá produzir um vibrato que mais não é do que uma nota tremida. O bambolear lento da mão também é mau, cria um zumbido monótono e pesado e afecta a entoação, fazendo com que a nota soe com três quartos de tom.
O vibrato é quase impossível de explicar por palavras, e talvez o mais difícil de ensinar. É essencialmente uma questão de ouvido sensível, como a entoação, e se o aluno não tiver um ouvido sensível é improvável que venha a produzir um vibrato realmente bom, ou uma entoação certa; e é inútil desenvolver uma técnica sobre estas bases erradas. Uma das maneiras mais simples de curar os efeitos destas imperfeições técnicas é exercitar a mente a ouvir o que está a ser produzido. Ocorreu-me frequentemente deparar com muitas pessoas que tocam sem nunca terem aprendido a ouvir aquilo que estão a tocar. Tenho a certeza de que muitos alunos fazem aquilo que lhes é dito para fazerem e muitas vezes praticam conscienciosamente sem estarem a ouvir o resultado do seu trabalho; e praticar exaustivamente, sem a capacidade de se ouvir ou de auto-criticar, é injurioso. Há outros, ainda, que têm facilidade de tocar sem praticarem mas raramente há qualquer profundidade ou verdadeiro valor na sua execução; o produto final é sempre superficial e inacabado. Isto significa que não se dedicaram ao trabalho de investigação sobre o seu instrumento e que pouco reflectiram sobre ele, porque o que fazem surge sem esforço, naturalmente. É impossível que um tal executante venha a ser um professor útil, porque, para ensinar algo, temos de saber exactamente como se faz - só quem se tenha esforçado arduamente para ser um bom artista poderá vir a ser um bom professor. Não há forma fácil na criação de um grande artista. Tal só se pode alcançar com muita paciência, trabalho árduo e amor pelo instrumento através do qual o artista comunica com o mundo.
Para que uma execução seja verdadeiramente perfeita, nenhuma qualidade se deve destacar, antes devem todos os pormenores técnicos surgir naturalmente – na exacta proporção requerida para a apresentação da peça. Só desta maneira poderá o executante aspirar a atingir aquele ponto de concentração que equilibra todos os elementos técnicos e de interpretação musical, para que a beleza da obra se destaque com primazia numa execução.
Pode dizer-se que o violoncelo é o instrumento mais difícil de se acompanhar. Há de facto poucas pessoas capazes de acompanhar cantores e instrumentistas. Em regra, o que acompanha bem os cantores acompanha mal os instrumentistas indiferentemente. A tarefa do acompanhador não é fácil. É verdade que este tem menos responsabilidade em público e não precisa de sofrer as terríveis agonias que os solistas sofrem. Para começar, tem que sintonizar a sua personalidade e individualidade com a do solista, a sua natureza tem que se fundir facilmente com a do outro, deve haver da sua parte empatia, altruísmo e subserviência sem auto-anulação. É essencial que quem acompanha seja capaz de interpretar a obra da mesma maneira que o solista e a sua grandeza evidencia-se na sua capacidade de prever o que o solista irá fazer e não só seguir a parte do solo, mas também apoiá-lo ao mesmo tempo. Como executante ele deve ter a técnica do solista, talvez com menos apuramento, e também o conhecimento da qualidade de sonoridade exigida, tanto ao tocar os “tutti” como quando acompanha o solista.
O cantor precisa de mais apoio de quem o acompanha e, devido à letra e à respiração, é mais fácil o pianista acompanhá-lo. Também há uma necessidade de usar o pedal para suster os acordes e harmonizações que ajudem o cantor; enquanto que, com um instrumento de cordas, especialmente com o violoncelo, o pedal deve ser usado cuidadosamente e é o pedal de surdina que é o mais usado.
A posição do acompanhador no mundo da música é tão importante como o de solista ou do executante da música de câmara; ele tem nas suas mãos o poder de fazer com que um concerto seja um sucesso ou um fracasso e, apesar do seu lugar na lista dos artistas ser sempre muito humilde, o que é exigido é na verdade muito.
Frequentemente os pianistas tornam-se acompanhantes porque falharam como solistas; outros acompanham enquanto aguardam uma oportunidade de se tornarem solistas; e poucos acompanham por acharem que é esse o seu métier. Em França há um maior número de bons músicos de acompanhamento do que em Inglaterra porque, assim que aprendem a técnica do piano, têm aulas dadas por solistas, tanto músicos de instrumentos de corda como cantores, e é natural que os acompanhantes tirem ainda mais proveito dos solistas do que dos seus próprios professores de piano. É interessante verificar, neste ponto, que os melhores acompanhantes para os instrumentos de cordas são quase sempre os próprios instrumentistas de cordas. Parecem saber intuitivamente qual a força de sonoridade necessária em cada momento, assim como parecem ter a capacidade de se movimentar em sintonia com o solista.
A arte de acompanhar deveria ser estudada tão cuidadosamente como qualquer outro aspecto de música, visto que o acompanhante é indispensável ao solista e que a sua contribuição na execução da obra é tão vital como a da pessoa que ele está a acompanhar para que o produto final seja uma obra completa. Artisticamente, o acompanhador pode ser um artista tão válido quanto os melhores solistas do mundo; a única diferença que existe na sua posição material é na verdade infeliz – é uma diferença comercial.
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