quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Saraband - ou a insuficiência do amor


"First, people are together, and then they part ways and talk on the phone, and finally there's silence."

Não é meu objetivo fazer uma resenha do último filme de Ingmar Bergman, seu canto do cisne, como alguém descreveu muito bem. Apenas gostaria de deixar um comentário sobre a impressão que este filme me deixou, quando o assisti há aproximadamente dois anos, e nunca escrevi a respeito.

Eis mais um filme de Bergman sobre a falta de amor, sobre o desamor mais consciente de si, entre pais e filhos, entre amantes ou casados, entre amigos, entre as pessoas. Mais um exemplar sobre o tema da angústia crescente gerada pelo desamor que sabe de si e não o nega, não o esconde com meias palavras e falsos relacionamentos ou hipocrisias sociais, mais um filme para o painel onde se enquadram filmes do mestre como "O Silêncio" (Tystnaden, com a divina Ingrid Thulin, uma das divas de Bergman) , "Gritos e Sussurros" (com várias divas reunidas, entre elas Liv Ullmann, Harriet Anderson e Thulin novamente) e "Sonata de Outono (com Ullmann e Ingrid Bergman). Mas este filme se diferencia dos demais por não ser mais um filme sobre o feminino e a angústia vista pelo olhar de mulheres sufocadas pelo peso dos anos, das obrigações, da existência em si. "Saraband" parte de um pai detestável que é um homem desprezível a priori, interpretado pelo magnífico Erland Josephson, que protagonizou o filme "O Sacrifício", de Tarkovski, numa clara homenagem a Bergman pelo uso da paisagem sueca e pelo ator principal. Josephson é o núcleo de ódio acumulado e desprezo profundo pelo filho e pelos demais, o que o torna um alvo fácil de crítica desde o início do filme. Mas Bergman certamente não poderia parar aqui, e expande o sentimento de vazio e desprezo até que eles estejam presentes em quase todas as pessoas envolvidas. Uma mãe que nunca visita a filha esquizofrênica, o filho que desconta o desamor na filha através de um excessivo e quase incestuoso zelo, uma dominação intelectual e afetiva sufocante.

Neste ponto entra o cello. Motivo da tensão crescente entre pai e filha, o instrumento representa um objeto venenoso e torturante para a jovem, e o único laço possível entre um homem velho e massacrado pela solidão, e o futuro, anunciado no frescor da juventude da menina que é obrigada a estudar sob ameaças alternadas com carinho em excesso uma difícil sonata de Hindemith. O filme de Bergman não é realista. As cenas são extremamente simples em sua maioria, com uma atuação elegante e tranquila, quase ausente em suas naturalidades (refiro-me a Josephson e Ullmann, já que as cenas de pai e filha feitas por Borje Ahlstedt e Julia Dufvenius são de grande tensão dramática... prepare-se para berros, lágrimas e agressões), possivelmente por serem estreladas por dois grandes atores na idade madura... temos aí a desilusão vestida e coroada de calmas flores secas e mantos cinzentos da velhice. Ocorre que, paradoxalmente, parecemos estar num sonho ou num pesadelo tranquilo e silencioso, ao som de uma famosa Sarabande de uma das Suites de Bach... mas a qualquer momento algo horrível pode acontecer, temos constantemente esta sensação. É um filme onírico, mas como devem ser os pesadelos de pessoas refinadas e conformadas com seu vazio exterior e interior.

Ullmann é uma ex-mulher do personagem de Josephson, quem vem visitá-lo sem motivo aparente. Aí resta uma esperança a este desamor generalizado... ela não tem um motivo racional para vir conversar e fazer companhia a um homem tão frio e egocêntrico. Mas ela vem e fica muitos dias, meses... e observa todo o drama dos outros trẽs personagens. Marianne é tão expectadora dos eventos quanto cada um de nós, acompanhando aquela silenciosa loucura crescente. O filho do personagem de Josephson, Henrik, é violoncelista e viúvo, e impõe à filha que ela deve ser solista, destino recusado por ela, que deseja tocar numa orquestra, fazer parte de um grupo, e não viver na infelicidade de um esforço massacrante segundo seu ver. O pai é depressivo e tem medo da solidão, um medo doentio do desamor que ele ainda não assumiu ser sua realidade. Ele já está tão mergulhado nesta solidão quanto seu pai, só que este tem a coragem de assumi-la e vive esta mesma misantropia de forma quase sacana.

A peça de Bach parece representar uma mão salvadora para estas pessoas que naufragam em vazio... o som, profundo e quase sagrado na sua simplicidade, é como amor divino, única possibilidade para estas almas perdidas num mar negro. E a libertação da simplicidade da sarabande, assim como da palavra "não" em um momento de negação, de recusa, que pode decidir toda uma vida e libertar uma pessoa inicialmente fadada ao destino de desprezo e sofrimento inconscientemente moldado por seus pais. Neste ponto, o amor mostra-se insuficiente diante do desejo mais básico dos er humano. O de ser livre.

Será que o problema é que o amor em excesso de fato é desamor transtornado, culpado, doentio, virado obsessão? Ou será que às vezes é necessário realmente sacrificar uma forma de amor absoluto em nome desta ansiada liberdade individual? O amor só pode florescer na liberdade, li uma vez, rase de um iogue famoso (Rajneesh esqueci seu sobrenome, o Osho). Talvez seja este o problema.


Curiosidade: como todo diretor, Bergman tem também seus cacoetes. Uma cena repete sua mania em se preocupar com a angústia do tempo e a consciência dele... a cena em que Liv Ullmann encara um relógio por um minuto. É a mesma coisa que faz Max von Sydow em "A Hora do Lobo", aliás meu Bergman favorito.


Fica o silêncio atormentador e a sarabande de Bach. Triste este filme, e angustiante... mas belo como uma árvore morta à beira de um rio no auge do inverno e da desesperança da madrugada.

3 comentários:

Andreas Mann disse...

...acabei de ter um vislumbre do que alugarei neste final de semana...:)

achei interessantíssima a sua colocação "(...)Será que o problema é que o amor em excesso de fato é desamor transtornado, culpado, doentio, virado obsessão?"

Lí em algum lugar que hoje em dia, em uma sociedade regida pelo sistema Capitalista, isto é; posse e lucro; as próprias relações interpessoais são "objetizadas".

A quase tudo, tendemos a observar as coisas sob a ótica do "meu".
Meu carro... Meu apartamento... - E, porquê não, meu Cello? (rsrs)
Enquanto objetos inanimados, ainda vai lá; é aceitável. Mas e quando a coisa toda vai para as relações interpessoais? "minha namorada"; "minha esposa"; "minha?" Digo, será correto nós nos dirigirmos ao próximo, como "meu"? É curioso; pois por outro lado, qual seria a alternativa?

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Não tenho muito contato com os filmes de Bergman, mas sou apaixonado por suas peças/livros. Acho que mencionei algo a respeito de uma releitura do "Cenas de um casamento", provavelmente - na minha opinião - um dos melhores livros já escritos...
A cena da briga, da agressão física, permanece incrustada em minha mente; como se a mesma contrastasse com a realidade em que estou inserido. Veja bem, não me refiro a minha família, já que embora tenhamos nossas "pendengas" como qualquer família, jamais chegamos a extremos.
Mas, particularmente em relação ao mundo de aparências que vemos no dia a dia; vizinhos, colegas de trabalho etc.. Por trás de cada família aparentemente perfeita e supostamente exemplo de boa moral, pode se esconder tempestades de proporções cataclismicas...

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Quanto a estética; mesmo sem ter assistido ao filme, por algum motivo pensei na linha do "dogma" Dinamarquês...

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Ótimo post, Cecília!! :)

Anônimo disse...

I will not approve on it. I over polite post. Especially the designation attracted me to be familiar with the whole story.

Anônimo disse...

Genial brief and this enter helped me alot in my college assignement. Say thank you you on your information.